Coronavírus e o lobo mau

Curioso como o ser humano se apavora quando o lobo assopra a casinha do porquinho despreparado. A casa cai e o porquinho corre para a casa do segundo porquinho. Mas, por que o porquinho não se ocupou antes, reza a historinha?

Por Mauro Hegenberg* para os Jornalistas Livres

 

O que o lobo tem a ver com o vírus?

Curioso como o ser humano se apavora quando o lobo assopra a casinha do porquinho despreparado. A casa cai e o porquinho corre para a casa do segundo porquinho.

Mas, por que o porquinho não se ocupou antes, reza a historinha?

Em 2002, em Guangzhou, um vírus desconhecido causou o surto SARS, um coronavírus. Espalhou-se por 29 países e matou 800 pessoas.

Em 2012, outro coronavírus perigoso causou a Mers, que se originou em camelos.

Na época, muitos cientistas alertaram para a necessidade de uma vacina contra estes coronavírus: porque outros viriam.

Mas, estas viroses foram controladas e nenhum governo ou laboratório quis financiar as pesquisas para a fazer a vacina. Não houve interesse comercial.

Como são primos, aquelas vacinas apressariam a realização de uma vacina contra o atual Covid-19.

Os dois primeiros porquinhos não se interessaram em ter uma casinha sustentável; e a casa caiu.

Tantos votaram em governantes que desprezam a saúde e privilegiam uma “economia” com o rosto da morte; e só na hora em que o lobo assopra a casinha, o povo se lembra de que precisa do cientista (que é o terceiro porquinho).

Mas nem só de coronavírus vive a nossa espécie! Outros lobos também rondam nossas vidas.

Morrem 8 milhões de pessoas por ano, no mundo, por conta do tabaco. É como a historinha do Pedro e o lobo: de tanto se falar, ninguém leva a sério; até o dia em que o lobo come as ovelhas.

O ser humano se defende pela negação, um poderoso mecanismo de defesa: “comigo, não vai acontecer”!

E dá-lhe mais lobo, um que vale também para o trânsito, por exemplo. A estimativa era (agora é provável que isso mude, suponho) de que ocorressem 1 milhão e 900 mil mortes por acidente de trânsito em 2020 (mais do que o vírus vai matar?).

Mas, quem se importa?

Aqui a historinha de lobo mais adequada é a do Chapeuzinho vermelho que vai passear pela floresta, cantando “pela estrada a fora, eu vou bem sozinha…”.

Há um perigo iminente na cantiga, mas quem se importa se o lobo mau passeia aqui por perto….?

Quem dá bola? Lobo mau, ninguém sabe, ninguém viu; até ele comer a vovó.

O que dizem é que estas mortes se distribuem ao longo do ano, enquanto o coronavírus mata em poucos meses: “precisa achatar a curva, não pode quebrar o sistema de saúde”.

Ah, tá, entendi, morrer aos poucos pode, então: que interessante!

São diferentes os mecanismos de defesa e de pânico que atuam em nós.

É que o problema se acelera quando a morte chega à porta, apressada; quando a morte está “apenas” à espreita, os humanos fingem que “não é comigo”.

Acontece com a violência, com o estresse, com o tabaco, com o açúcar, com os acidentes de trânsito, com a falta de saneamento básico, com a poluição, com as desigualdades, com as drogas, com a corrupção, com a questão climática, com o desmatamento, com os preconceitos, com o feminicídio, com os abusos, com os imigrantes, com as guerras, com os agrotóxicos, com a superpopulação, com, com, com…

Mas, com o Covid-19 é diferente.

Isto se deve também à paranoia instalada pelo novo vírus. Como não pode ser visto, está em todos os lugares, “sabe voar (sic)”, se espalha com velocidade e é mortal, é justo que seja assustador e apavore as pessoas, que acham que se puserem o pé na rua adoecerão gravemente.

Curioso como a paranoia se instaura com um vírus invisível, mas não impede as pessoas de saírem nas ruas, diante da violência que matou 60 mil brasileiros em 2017.

Matar aos poucos pode?

São 139 mil mortes por problemas respiratórios no Brasil em 2019; e ninguém deu bola.

Não quero dizer que as pessoas devam sair na rua para enfrentar o vírus de peito aberto. Parece que o isolamento faz diferença, e dizer que é uma gripezinha é piada de matar defunto.

Nossos governantes, que privilegiam o neo-liberalismo agem como o lobo e os sete cabritinhos. O lobo, lembra (?), engana as pequenas cabras e consegue comer seis delas sorrateiramente.

Dizem estes governantes que não há dinheiro suficiente para o sistema de saúde, enquanto engordam suas contas bancárias comendo as cabritinhas da corrupção.

Enquanto a população não entender o significado de Mateus 7:15-20, na parábola do Lobo em pele de cordeiro, e continuar votando em falsos profetas, continuaremos a não ter verba para a ciência, para a educação e para a saúde.

No atual momento do corona, os lobos em pele de cordeiro incentivam os bairros nobres a ficarem em casa, enquanto diminuem a quantidade de ônibus, trens e metrôs, jogando a periferia aos leões (ou ao vírus), repetindo a mesma lenga lenga de toda a história da humanidade.

Nesta pandemia, lobo algum veio a público confessar que errou ao retirar verba do SUS, da educação, da ciência; pelo contrário, eles responsabilizam a pessoa que está na rua, como o assassino transmissor.

Você entendeu, né? A culpa das mortes é sua, porque você saiu de casa e matou alguém. Estes lobos não se sentem responsáveis por nada do que eles fizeram durante décadas (séculos, diria melhor).

Tenho a impressão de que tem algum cheiro de lobo no ar. Os humanos estão apavorados, e com razão. O vírus não é assassino, ele apenas cumpre seu jeito vírus de ser.

Quem mata é o sistema político que não assiste à população com os serviços básicos para uma vida saudável. Tornou-se claro que nos países com melhores sistemas de saúde, o corona matou menos gente.

Esta cisão entre proteger a economia ou a vida, rapidamente tomou contornos políticos extremados. Deve ter alguma solução melhor do que esta dicotomia.

A população historicamente desprotegida se recusa a obedecer o #ficaemcasa, porque sabe que isso não lhe diz respeito: “se posso sair para trabalhar, acotovelado nos trens de subúrbio, porque não posso sair no final de semana para me divertir”? “Proteger o patrão é meu dever constitucional”?

Esta equação “nobreza protegida em seus castelos e aldeões lançados aos bárbaros”, com milhões de desempregados e periferia entregues ao vírus, não me parece fechar a conta.

Talvez tenha algo mais plausível do que esta luta do “bem” (isolamento horizontal/ vidas salvas – da nobreza, diga-se, porque a periferia e o trabalhador informal não podem fazer home office) contra o “mal” (isolamento vertical/ a tal da economia).

Esta disputa entre nós e eles, que apareceu fortemente nas últimas eleições no Brasil, presta desserviço à inteligência.

Disseram que o maniqueísmo tinha acabado com a queda do muro de Berlim. Mas, ora veja, na hora em que o bicho pega, eis que ele volta com força total.

Por enquanto, é atacado quem é a favor ou contra. Também é atacado quem pretende uma saída não maniqueísta; ou seja, no pânico, qualquer um que se manifeste é atacado, porque o medo altera a capacidade de reflexão.

Nem presidente, nem governador, nem Judiciário, nem Legislativo, nem Ministérios: estamos sem liderança confiável. Deve haver uma saída mais sensata do que copiar a Europa ou os Estados Unidos, até porque o Trump tem trilhões de dólares para tentar salvar sua reeleição, o que o Brasil não tem.

Não sei qual é a saída, talvez ninguém ainda saiba, mas aceitar o não saber pode ser um bom primeiro passo.

O mundo vai mudar? Temos uma chance dourada para perceber os alertas dos vários tipos de lobos.

Lembrando que lobo não gosta de imprensa livre, nem de ensino de qualidade, cabe lembrar que na esteira desta crise global, ou tudo continuará como dantes no quartel d’Abrantes, ou seremos capazes de ler nas entrelinhas as eternas mentiras dos muitos tipos de lobos, e transformá-los no Lobo bobo da música de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, cantada por João Gilberto em 1959:

Era uma vez um Lobo Mau
Que resolveu jantar alguém
Estava sem vintém
Mas arriscou
E logo se estrepou …..

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