Como Tarcísio de Freitas fabricou biografia para disputar o governo de São Paulo

Apadrinhado por Bolsonaro, sem conhecer São Paulo, o capitão Tarcísio cria imagem eleitoreira para convencer paulistas
Tarcísio de Freitas
Tarcísio de Freitas querendo parecer paulista (Foto/Reprodução)

No dia seguinte à eleição do primeiro turno em São Paulo, a manchete recorrente em jornais e sites foi: “Quem é Tarcísio de Freitas”. Por um motivo muito simples: a real biografia do ex-ministro do governo Bolsonaro era zero conhecida do público. O estranho no ninho da política paulista deixou atônita a campanha de seu principal oponente, Fernando Haddad (PT), surpreendeu analistas políticos e institutos de pesquisa que o apontavam em segundo lugar na corrida ao Palácio dos Bandeirantes, com cerca de 8 pontos atrás do petista. Tarcísio amealhou 9,8 milhões de votos, Haddad 8,3 milhões. Para um cara que não sabia sequer o endereço do colégio onde votaria, o candidato do Republicanos tem ido longe demais.

Quem é, de fato, o carioca que caiu de paraquedas, tem se esforçado para parecer com o povo do interior, rezou em Aparecida, mas recusou a hóstia? Como se comporta, o que fala e pensa o homem que planeja dirigir o estado mais rico da nação? Em quem se inspira?

Pelo menos em público, Tarcísio não é de dar palpites. No governo marcado por um elenco de ministros estabanados, ególatras, perigosos, saqueadores ou malfeitores, Tarcísio Gomes de Freitas, 47 anos, ex-chefe da pasta da Infraestrutura, parece o oásis do bolsonarismo. Na ruidosa administração Jair Messias, gestada na Babel dos dutos subterrâneos, destacou-se, inicialmente, mais pelo silêncio do que por qualquer outra coisa. A imagem construída é de técnico pragmático, racional, com perfil pouco político.

Ele se fez no meio do caos. No desastroso manejo da pandemia por Pazuello (Saúde), entre os sórdidos desvarios de Damares Alves (Família), o excesso de vaidade que caracterizou a ação de Sérgio Moro (Justiça), as lambanças, tipo Reforma da Previdência, plantadas na economia de Paulo Guedes, passando pelos crimes ligados a Ricardo Salles (Meio Ambiente) e apagões produzidos por chefes da Educação, como Milton Ribeiro, que imprimiu sua foto na Bíblia com dinheiro do ministério, Tarcísio era “o cara”.

Financiado pelos barões da segurança privada

A maior parte da opinião pública desconhece a informação de que Tarcísio é citado na investigação da Polícia Federal sobre corrupção no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), que ele dirigiu. Poucos paulistas ouviram falar que Tarcísio se dá com Ney Santos, prefeito cassado de Embu das Artes, que foi preso duas vezes e é investigado por lavagem de dinheiro do tráfico de drogas administrado pela facção criminosa Primeiro Comando da Capital, o PCC.  

Os eleitores talvez não tenham ciência de que entre os principais financiadores da campanha estão os barões da segurança privada. Washington Cinel, dono da Gocil, doou R$ 300 mil. Arnaldo Costa Vargas, proprietário da AutoDefesa, deu R$ 200 mil. Vargas é sócio do ex-vereador campineiro Nelson Santini Neto (PP), o Tenente Santini, dono da CampSeg Vigilância e Segurança Patrimonial Ltda., cotado para secretário de Segurança Pública, caso Tarcísio se eleja. Santini é para o carioca o conselheiro-mor em assuntos de segurança.

Foi na influente companhia do tenente que Tarcísio decidiu retirar a câmera das fardas da PM – algo que reduziu a letalidade nas operações policiais em 85%. Para justificar esta ideia, o candidato repete com certo verniz uma frase da mesma linhagem de “bandido bom é bandido morto”. Na versão de Tarcísio, o mantra é: “Quem tem que ser vigiado é o marginal”. Por suposta leveza semântica, ele é considerado um bolsonarista light, como se fosse possível qualquer sutileza partir de um “fiel admirador de Bolsonaro”, como ele diz de si mesmo.

Com ideias e trejeitos do padrinho

Em campanha, como Bolsonaro queria

O candidato do capitão reitera que é independente, tem diferenças em relação ao pensamento e modo de agir do padrinho. Em uma entrevista, tentando não ser comparado a quem pariu sua candidatura, Tarcísio declarou: “ Eu tenho uma cultura muito voltada para o resultado. Não mantive uma postura ideológica na condução do Ministério da Infraestrutura. Sempre tive uma postura mais pragmática”; “ O governo Bolsonaro teve muita entrega, mas pecou na narrativa em algumas questões”.  Suas declarações tentam fabricar um rosto à distância da grande rejeição de Jair Messias. A despeito da tentativa, Tarcísio tem dito em campanha que quer influenciar o Congresso Nacional a reduzir a maioridade penal para 16 anos, acabar com a saidinha de presos, construir mais presídios , mimetizando seu mentor. Além, obviamente, de encampar a política armamentista do chefe, o derrame no mercado de fuzis, pistolas, revólveres e munições para que o povo tenha acesso, se aparelhe com máquinas de morte e defenda o bolsonarismo raiz.     

Iguala-se ao criador também ao se comprometer, direta ou indiretamente, com as pautas de costume – aquelas ideias moralistas e fundamentalistas que pretendem continuar impondo à vida privada dos outros. Um sinal disto é a presença de um religioso na infraestrutura da sua campanha, como consta no Portal DivulgaCandContas-2022. O pastor, advogado e palestrante Fabiano Campos Zettel é o maior doador individual da candidatura. Zettel entregou a Tarcísio R$ 2 milhões, já tendo empenhado outros R$ 3 milhões no cavalo eleitoral de Bolsonaro. Não é nada modesta a aposta que o pregador da Igreja Bola de Neve Church, em Belo Horizonte, faz no conservadorismo e no avanço da extrema direita.

Tarcísio só não incorporou, ainda, a “escola sem partido”, bandeira do bolsonarismo e do Tenente Santini – um grande amigo do clã presidencial. Em 2018, Santini fazia “de graça” a segurança pessoal de Michelle Bolsonaro e de Laura, filha do casal.  Já na empreitada pró Tarcísio, sua CampSeg aparece como prestadora de serviço, cobrando R$ 74 mil. Sim, o tenente é irmão de José Vicente Santini, aquele destituído do cargo de secretário-executivo da Casa Civil por utilizar avião da Força Aérea Brasileira para voar da Suíça à Índia, em 2020. Bolsonaro o chamou de “imoral”, mas pouco depois o readmitiu no governo. Esteve com Salles, no Ministério do Meio Ambiente, atualmente é assessor do gabinete pessoal do presidente, no Palácio do Planalto. Os dois irmãos são filhos do general Nélson Santini, brother de Jair desde os bancos da Escola de Artilharia do Exército, no Rio de Janeiro.

“Você tem cara de paulista”, disse Bolsonaro

No segundo semestre de 2019, Tarcísio começou a performar bem no Twitter, porque os filhos de Jair Bolsonaro enchiam de elogios e associavam seu nome à pautas positivas. Era uma cortina de fumaça encobrindo Paulo Guedes, que andava em desgraça com as medidas impopulares produzidas pelo seu liberalismo sanguinário. Ou pelas suas bárbaras declarações, como aquela em que condenou governos petistas por levarem empregadas domésticas a viajar para a Disney. Tarcísio, caladão, faria menos estragos. Ele provou do sucesso nas redes sociais e gostou bastante. Passou a postar fotos das viagens que fazia com o presidente para inaugurar obras.  

Foi para Tarcísio que Bolsonaro olhou quando procurava um nome para disputar o governo de São Paulo. O presidente disse: “Você tem cara de paulista”. Tarcísio riu, incrédulo. Nunca havia disputado nem grêmio estudantil, e é um carioca da gema. Não seguraria o rojão. Bolsonaro explicou que precisava de um palanque forte no Estado de São Paulo para minar os tucanos, há 28 anos no poder, e bater de frente com o PT. Reza a lenda que Tarcísio é disciplinado. Abaixou a cabeça, alugou um imóvel residencial em São José dos Campos e, em janeiro deste ano, solicitou transferência de seu título de eleitor. Mundo pequeno: o dono do imóvel é um concunhado dele, também contratado para prestar serviços no comitê da campanha. Trata-se de Mauricio Pozzobon, ex-assessor da presidência da Infraero, empresa pública, de administração indireta, abrigada no guarda-chuva do ministério que o carioca comandou.

Tarcísio andou na corda bamba no início da campanha, com medo de tropeçar na mesma artimanha – o endereço falso – que impediu Sérgio Moro (ex-Podemos, atual União Brasil) de disputar em São Paulo. Teve mais sorte que o ex-juiz paranaense e senador eleito: em 15 de setembro, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) rejeitou um pedido de impugnação da candidatura de Tarcísio por residência fake, considerando ok a comprovação de seu domicílio eleitoral. O TRE selava, assim, o frágil vínculo do carioca com São José dos Campos. Para a ligação soar ainda mais convincente, Tarcísio buscou reforço em Felício Ramuth (PSD), ex-prefeito da cidade que o adotara. Em entrevista a uma emissora de rádio, Ramuth havia criticado o paraquedista de última hora, mas acabou retirando a crítica e topou ser vice na chapa dele.

Flamenguista, fã de sertanejo, não conhece Campos Elísios

Nem tudo é perfeito. Tarcísio treinou muito, decorou temas caros para os paulistas, mas derrapou no debate com Haddad no segundo turno. Errou algumas vezes ao repetir o nome do bairro para onde pretenderia transferir o Palácio do Governo. Na cola de Tarcísio constava Campos “dos” Elísios em vez de Campos Elísios. São Paulo é terra de muitos, feita por brasileiros de todos os cantos, de imigrantes, de refugiados. O estranhamento em relação ao candidato é a sua falta de conexão com os problemas, com as inúmeras realidades locais, os modos de vida, as necessidades, as profundas desigualdades sociais do estado. Um aventureiro no governo é um risco enorme para o povo.

O carioca comunga a identidade de coturno com o vice-presidente Hamilton Mourão e o general Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional. Os três fizeram-se militares na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). É, como Bolsonaro, ex-capitão do Exército. Engenheiro civil, casado, pai de dois filhos, flamenguista, fã de música sertaneja, afirma que seu destino é correr o mundo. Sua campanha na TV mostra foto tirada em missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti, entre 2005 e 2006, época em que chefiou a Seção Técnica da Companhia de Engenharia do Brasil.

Está no barco de Jair Messias desde novembro de 2018, quando aceitou o Ministério da Infraestrutura, que tem responsabilidade sobre estradas, hidrovias, ferrovias, portos e aeroportos do país. Bolsonaro convidara antes alguns militares, que declinaram. Os partidos disputam o controle da pasta por onde corre muito dinheiro e que lida com grandes empresas da construção civil. Naquele momento, Tarcísio não era apadrinhado de nenhuma sigla política, e ocupava cargo de assessor técnico na Câmara dos Deputados. Havia aprendido a ser governo no Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC de Dilma Rousseff. Fora indicado a ela pelo general Jorge Fraxe para o cargo de diretor-executivo do Dnit. Em julho de 2016, tornou-se secretário de coordenação do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), para conduzir o processo de privatizações, concessões e desestatizações de ativos do governo. Ficou no cargo até dezembro de 2018. Em recente evento do agronegócio em São Paulo, Bolsonaro confessou: “Tarcísio foi descoberto por nós por acaso”. 

Tarcisão do Asfalto, ou Odorico Paraguaçu, é ruim de estrada

Conhecido como “Tarcisão do Asfalto”, por ser grandão e gostar de contar que põe “a mão na massa”, é também comparado a Odorico Paraguaçu. O personagem de Dias Gomes, brilhantemente interpretado por Paulo Gracindo, era um prefeito demagogo, iludia a população, não apresentava nada de concreto além de um cemitério que não conseguia inaugurar por falta de mortos na cidade. À menção de Odorico, feita pelo site “Jota”, o candidato do capitão Bolsonaro retrucou: “É dor de cotovelo da oposição. Tenho um estoque de realizações para mostrar.”

Não é o que atesta a Confederação Nacional dos Transportes (CNT), que analisou 110 mil quilômetros de estradas privadas e públicas. Nos itens avaliados – pavimentação, sinalização e geometria – a constatação é de piora no setor. No final do ano passado, observando apenas as rodovias estaduais e federais, 2.773 quilômetros estavam em condições insatisfatórias de circulação. Considerando só as federais, incluindo as concedidas à iniciativa privada, o quadro é desolador. Em 2018, antes de Tarcisão chegar ao posto, 48,4% das estradas estavam regulares, ruins ou péssimas. No final do ano passado, o índice subiu para 55,9%.

Mortes em acidentes, desmoronamentos e muitos buracos na pista aparecem como resultado do descuido deste técnico questionável e político feito às pressas. No último dia 8, a ponte sobre o Rio Autaz Mirim, localizada no km 25 da BR-319, desabou horas após ser interditada. A rodovia federal é o único acesso terrestre de parte do Amazonas ao restante do país. A estrutura ruiu dias depois da queda da ponte sobre o Rio Curuçá, que deixou quatro mortos, 14 feridos e um desaparecido. O abastecimento de alimentos e outras mercadorias permanece até hoje prejudicado. Tarcísio nada disse sobre a tragédia.

Dos R$ 5,6 bilhões de investimentos destinados em 2021 aos transportes, R$ 4,5 bilhões estão orçados para rodovias. Mas nada deste dinheiro chegou àquele trecho da BR-319 para manutenção e reparo. O Dnit sempre põe a culpa do atraso das obras nas chuvas no Norte. Mas quando o período das chuvas passa, não apresenta desculpa alguma.

 Tarcísio não é bom gestor, ao contrário do que pinta o marqueteiro da sua campanha. Um trecho de 73 quilômetros da BR-470, no interior catarinense, permanece em obras para duplicação desde 2011, como detalha uma reportagem do “The Intercept Brasil”. O “mão na massa” cortou R$ 25 milhões do orçamento para duplicações. É por isso que o trecho da BR-381, entre Belo Horizonte e Governador Valadares, em Minas Gerais, segue sendo um matadouro de motoristas e passageiros. Ela foi a segunda rodovia federal com maior número de mortes em 2021, vitimando 162 pessoas, segundo dados da Polícia Rodoviária Federal. Tarcisão do Asfalto foi até a BR-381, fez uma self, postou nas redes, bateu bumbo pela inauguração de míseros sete quilômetros de duplicação, deixando outros trôpegos 66 quilômetros para um eterno depois.

Completa o perfil de péssimo gestor público o desrespeito de Tarcísio com o dinheiro do povo brasileiro. O Tribunal de Contas da União (TCU) já bateu na porta do ministério algumas vezes diante do disparo na quantidade de obras sem licitação e os indícios de irregularidade. Uma reportagem da “Folha de S.Paulo” mostra que as dispensas incluem três contratos de empresas diferentes para cuidar de um mesmo trecho de estrada. Além disso, há repasse de verbas para a mineira LCM Construção e Comércio, que foi alvo da Polícia Federal, sob suspeita de fraude no Dnit. Ela havia sido beneficiada com a dispensa de licitação em um contrato de R$ 40,5 milhões. Em 2019, tornou-se alvo central da Operação Mão Dupla, da PF, que culminou na prisão de funcionários do Dnit e da LCM. 

A empresa não deveria participar de obras públicas até quitar as contas com a Justiça. Mas ao contrário disto, em 2021 foi a companhia que mais dinheiro recebeu do ministério de Tarcisão. Ao todo, abocanhou R$ 714 milhões. O gestor, aliás, torra dinheiro muito bem. Durante sua permanência na equipe de Bolsonaro, os gastos sem licitação no Dnit representavam, em valores nominais, R$ 224 milhões em 2019, R$ 421 milhões em 2020 e R$ 1,1 bilhão no ano passado. Uma alta de 400% em dois anos, conforme se lê no Portal da Transparência.

Dinheiro das privatizações pode escoar pelo ralo

Se tivesse que escolher uma imagem para representá-lo, Tarcísio, certamente, elegeria um martelo. “Investimento chegando e martelo voando”, costumava dizer o ex-ministro. Tarcísio amou o instrumento de madeira que bateu em 80 leilões de bens públicos. Segundo o governo, isto representou mais de R$ 100 bilhões em investimentos para infraestrutura, modernização de portos, rodovias e ferrovias. Gaba-se, Tarcísio, de martelar para o Grupo CCR a concessão de 625,8 quilômetros das rodovias BR-101 (Rio-Santos) e BR-116 (Presidente Dutra). Ele também canta vitória sobre a venda da Ferrovia Norte-sul e de 15 aeroportos – os que dão mais lucros. E diz estar confiante na realização, ainda este ano, do leilão do Porto de Santos, o maior da América Latina, que ele deixou “no jeito” antes de sair do ministério para encarnar o candidato. Sobre a licitação da Presidente Dutra e da Rio-Santos, Tarcisão comemorou: “Foi um golaço de 15 bi de investimento”. Ele só não disse que o dinheiro escoa rapidamente pelo ralo e que o povo passará a desembolsar muito mais em dez praças de pedágio. 

No Debate da Band, Haddad o provocou: “Você não quer privatizar os terminais de Santos, que já são privados. Você quer é privatizar a autoridade portuária, o que não funciona em país algum”. O petista perguntou ainda o que o adversário faria com as universidades públicas, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o Instituto Butantan: “Vai privatizar também?” E arrematou: “Você planeja privatizar até a Sabesp. Água é bem essencial na vida humana, Tarcísio. Pode fazer parceria sem perder o controle acionário da Sabesp, o maior patrimônio estatal paulista”.  Tarcísio nada respondeu. Ele havia colaborado em operação semelhante, no Rio de Janeiro, onde a água está privatizada desde o ano passado. Para o seu povo fluminense, a conta está custando olho da cara: 70% mais alta.

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