A nova fase do bolsonarismo

Por RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

O ato de 25/2 inaugurou um novo momento na história da cultura política que aprendemos a chamar de “bolsonarismo”. Identificar o que mudou e o que permaneceu é mais importante do que especular o número total de manifestantes que compareceram à Avenida Paulista. Se é fato que a Secretária de Segurança Pública de São Paulo mentiu ao divulgar que foram 750 mil, também seria falso dizer que o ato foi um fracasso.

Sim, havia muita gente nas ruas, o que mostra a força de Jair Bolsonaro como líder popular. Nada surpreendente para quem acompanha o processo político brasileiro com alguma sobriedade. No entanto, o evento não modificou a situação jurídica do ex-presidente. O caminho de Jair Bolsonaro para a cadeia está pavimentado, e ele não irá sozinho. Aliados civis e militares o acompanharão. O próprio Bolsonaro sabe disso e implorou por anistia, em uma das arregadas mais constrangedoras do anedotário político brasileiro.

O “Sem anistia” não é apenas palavra de ordem. É a tradução da situação política atual do Brasil.

Diferente do que aconteceu no final da década de 1970, as forças democráticas não precisam negociar com um governo autoritário para viabilizar o fim da ditadura. A anistia decretada em 1979 foi um acordo que, de alguma forma, beneficiou todas as forças políticas envolvidas. Os opositores desejavam voltar ao país e retomar suas atividades em situação de normalidade democrática. Os agentes da ditadura queriam ter a certeza de que não sofreriam um ajuste de contas no futuro. Sentaram-se à mesa e pactuaram a ficção do esquecimento, que é exatamente o que significa a anistia.

Hoje, a situação é completamente diferente. A democracia é o regime instituído. Somente os bolsonaristas ganhariam com uma possível anistia. As forças democráticas, que estão no poder, não precisam negociar. Então, sem anistia!!!

Mas retomando o fio: o que muda no Bolsonarismo? Acredito que muita coisa. Explico.

O bolsonarismo nasceu em 2014, quando o então deputado Jair Bolsonaro se consolidou como fenômeno midiático na internet e pela primeira vez se lançou à corrida presidencial. No primeiro momento, suas ambições foram frustradas porque seu partido, na época o PP de Ciro Nogueira, preferiu apoiar a reeleição da presidenta Dilma. Mas os anos seguintes mostraram que a aquele parlamentar de baixo clero, controverso, algo tosco e que por anos havia sido um outsider da própria democracia tinha conseguido assumir o papel de crítico do sistema político que setores numericamente relevantes da sociedade acreditavam estar estruturalmente corrompido.

A linguagem crítica e disruptiva não foi abandonada nem no período em que Bolsonaro foi presidente. Na campanha eleitoral de 2022, depois de quatro anos de governo, ele ainda se dizia “inimigo do sistema”. Vimos, então, o surgimento da inusitada figura do “presidente outsider”, de alguém que mesmo ocupando o principal cargo da República se apresenta como adversário do “sistema”.

Com o fim do governo e com as autoridades policiais e jurídicas fechando o cerco, ficava a dúvida sobre o que aconteceria com o bolsonarismo. Creio que a resposta veio domingo. Por partes:

1°) Apesar de ainda manter o apoio dos militares das Forças Armadas e das forças auxiliares, o bolsonarismo caminha para a desmilitarização. A punição dos generais envolvidos na conspiração golpista provocará um efeito cascata e os fardados pensarão muito bem antes de se aventurarem novamente. A linha de ação será dada pelo STF, liderado por Flávio Dino, que antes de renunciar ao Senado apresentou projetos que tratam exatamente do tema da politização dos militares. Dino propôs a proibição de acampamentos na frente dos quartéis e deseja o fim da aposentadoria compulsória para juízes, promotores e militares que tenham cometido crimes graves. O texto sugere que essas pessoas sejam expulsas do serviço público. Dino no STF será ainda mais implacável com os bolsonatistas que Alexandre de Moraes. A escolha de Lula foi perfeita.

2°) Os grandes empresários também tendem a recuar. Bolsonaro perdeu a eleição, está inelegível, o golpe não vingou e a economia caminha relativamente bem. Botar dinheiro na agitação política se tornou investimento de altíssimo risco, sem retorno no horizonte. Isso não significa que esses endinheirados tenham mudado de opinião. Provavelmente, em 2026 apoiarão o candidato ungido pelo bolsonarismo, mas o tempo das travessuras golpistas acabou.

3°) Os políticos profissionais não vão colocar o pescoço no cutelo por causa de um agente político com pouquíssima perspectiva de poder. Na Avenida Paulista somente estiveram presentes os parlamentares que devem seu mandato a Jair Bolsonaro. Entre os governadores, foram apenas aqueles que estão interessados no espólio. Alguns se preocuparam em telefonar para ministros do STF pedindo desculpas prévias. Com a exceção de Tarcísio de Freitas, todos desceram do palanque quando Malafaia subiu o tom nos ataques ao Poder Judiciário. O centrão ficou em Brasília, interessado em abocanhar ainda mais o orçamento. Prioridades, né?

4°) Restou a Bolsonaro a base neopentecostal, o que não é pouca coisa. Não seria exagerado dizer que o conglomerado de igrejas evangélicas neopentecostais se tornou o mais poderoso e capilarizado movimento social e político em atuação no Brasil. MST, MTST, Movimento Negro Unificado, movimento estudantil, movimento feminista, movimento LGBT. Nenhum deles chega sequer perto da capacidade de formação politica que as igrejas neopentecostais possuem. Bem sabemos que os vínculos entre o bolsonarismo e o cristianismo neopentecostal não são novos. Mas até aqui, esses grupos religiosos eram parte da coligação bolsonarista, disputando espaço com outros atores. Agora, passam a ser força hegemônica, praticamente a única. Não à toa, no ato da Avenida Paulista, vimos um Bolsonaro acuado e com medo, enquanto Michele conclamava o “povo de Deus” a ocupar ainda mais o Estado e Silas Malafaia, dono e financiador do ato, dominava o palanque.

Nesse novo cenário, o bolsonarismo se enfraquece ou se fortalece? Depende se que queremos ver o copo meio cheio ou meio vazio.

É equivocado acreditar que bolsonarismo e cristianismo neopentecostal possuem exatamente os mesmos projetos para o país. Há muitos pontos de contato, mas também existem divergências, como na área da segurança pública, tão cara ao bolsonarismo. As igrejas defendem a socialização pela fé, algo bem distinto da máxima “bandido bom é bandido morto”. Certamente, o bolsonarismo raiz terá que ceder algo. Por outro lado, ganhará em diversidade.

Como assim?

Isso mesmo, leitor e leitora. “Diversidade”. Estamos acostumados a ouvir essa palavrinha sempre associada à esquerda, mas os tempos são complexos e os repertórios se misturam mesmo. No mundo inteiro, a extrema direita está buscando ampliar suas bases sociais, incluindo minorias, como pessoas com deficiências, mulheres e negros. Como para a extrema direita brasileira a imigração não é questão central, essa ampliação à diversidade é até mais viável do que para suas congêneres do norte global, fundadas na islamofobia, ou também na latinofobia, como acontece nos EUA.

A imagem do bolsonarista típico encarnada no homem, branco e rico tende a ser superada, ou melhor, diversificada. As igrejas são frequentadas majoritariamente por pobres, negros e mulheres. As mulheres serão cada vez mais importantes para o identitarismo bolsonarista. Aqui, Michele e Damares possuem papel fundamental, como representantes de um curioso feminismo conservador, baseado na figura da mãe, mulher biológica, acionada para contrapor a ideia de que a condição feminina é gesto de afirmação identitária, usada pelas esquerdas para acolher as pessoas trans.

Esse neobolsonarismo buscará avançar, portanto, sobre grupos sociais que historicamente são a base do lulismo e foram fundamentais para o desfecho das eleições de 2022.

Basta saber como reagirão os diversos segmentos da esquerda brasileira, cada vez mais isolada nas universidades e nos seus frágeis movimentos sociais, e sobrevivendo apenas da imensa força política do presidente Lula.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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