Chile decide hoje se aprova nova Constituição

Votação do novo texto constitucional neste domingo coloca esquerda e direita em campos opostos

O Chile decide hoje se sua Constituição será alterada ou não. A decisão divide o país. O plebiscito prevê o voto obrigatório. O país tem mais de 15 milhões de eleitores inscritos. Mais de 12 milhões de chilenos buscaram informações sobre suas seções de votação. Há expectativa de que pelo menos nove milhões de eleitores participarão do sufrágio.

Os chilenos se dividem entre as campanhas “Aprovo Chile Digno” e “Rechaço para Reformar” no plebiscito constitucional deste domingo. – Reprodução

A disputa está polarizada. Há duas campanhas nacionais que mobilizam os chilenos. A “campanha pelo apruebo” (campanha pela aprovação) que defende o novo texto constitucional e tem mobilizado líderes comunitários, artistas, pensadores. E a campanha pela rejeição “el rejection” do novo texto constitucional e, por consequência, manutenção da atual constituição herdada da ditadura militar de Pinochet há mais de 30 anos.

Foto de Jonnathan Oyarzun/Aton Chile

Campanha pela aprovação

A “Campaña del Apruebo” reuniu cerca de 500 mil pessoas num grande evento no cruzamento entre “la Alameda” e “Santa Rosa”. Natalia Valdebenito e Bombo Fica foram os mestres de cerimônia e diversos atores, intelectuais e representantes sociais participaram. Nomes como Ana Tijoux, Francisca Valenzuela y Los Vásquez, Illapu, Inti Illimani, Quilapayún, Santa Feria, Tomo como Rey, Catana y Ceaese lá estiveram. Todos foram voluntários e destacaram que não estavam sendo remunerados para lá estarem.

Gustavo Gatica, que perdeu um olho no “Estallido social” de 2019, também participou. Ele deixou o recado “Yo apruebo, por todos los ojos que perdimos” (Eu aprovo, por todos os olhos que perdemos). Muito emocionado, não conseguiu continuar falando.     

Com a proposta do texto da nova Constituição em mãos, os artistas leram alguns artigos da nova Carta proposta, onde reconhece-se a paridade, a plurinacionalidade, a proteção e garantia dos direitos humanos, a igualdade ante a lei, o direito a não discriminação e outros artigos que garantem direitos sociais e deveres do estado.

Campaña del Apruebo: A Campanha pela aprovação defende a nova carta constitucional. Tem feito também campanha intensa e mobilizado milhares de pessoas nas ruas. Mas tem enfrentado muitas fakenews, especialmente contra a atuação ativa da direita chilena. Por exemplo: representantes da direita foram à TV e dizem: “aqui na nova constituição está consagrado o aborto livre, quando tiver oito meses de gravidez vai poder abortar”. E a campanha pelo aprovar corre, vai a público e explica: É, vocês sabem como chama um aborto de feto viável? Parto. Não existe aborto de feto viável”. Esse é o tipo de coisas que estava sendo dito, comenta o jornalista Victor Saavedra. Ele explica que “o nível de desinformação é bastante elevado. E, como no Chile os donos de empresas podem aportar qualquer quantidade de recursos em campanhas que quiserem. A direita tem investido forte.”

A Ex-presidenta do Chile e atual Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos apoia a campanha.

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Campanha pela Rejeição

O ato da “Campaña del Rechazo” teve cerca de 700 participantes. A atividade aconteceu no Parque Metropolitano no Anfiteatro Pablo Neruda. Os coordenadores da campanha definiram a manifestação como um “ato privado”. Os coordenadores da campanha estiveram presentes e falaram: Carlo Siri – dono da Antigua Fuente, Juan Carlos Gazmuri, coordenador do movimento “No Más Víctimas” (Mais vítimas não); Francisco Orrego, porta-voz do “Con Mi Plata No” (com meu dinheiro não) e Fefa Ulloa, porta-voz da organização Irreverentes. O coordenador da “Casa Ciudadana por el Rechazo” (casa cidadã pelo não), Claudio Salinas, acusou o governo municipal de Santiago por discriminação”, por não permitir que o ato fosse realizado na rua Leteleier, preto de La Moneda. A mensagem final do evento foi apresentada por Salinas: Unidade nacional. Para ele, a partir do Rechazo há um caminho de esperança.

crédito: meganotícias

Campaña del Rechazo: a Campanha pela rejeição teve presença permanente em todos os meios de comunicação. Sua forma de comunicar foi bastante parecida com o modo como alguns canais da direita brasileira, por exemplo Brasil Alternativo, trazem suas notícias, em especial no que se trata de dar explicações ou definir a linha que separa ficção e realidade.

Alguns pontos sobre o novo texto constitucional proposto

TemaConstituição 1980Nova Constituição
Estado RegionalNão se estabelecem mecanismos de descentralização, fazendo com que o Chile seja um estado centralizadoO Chile será um estado Regional, conformado por entidades territoriais, com autonomia política, administrativa e financeira, preservando a integridade do Estado e reconhecendo que forma um único Estado indivisível
AnimaisNada diz. Nem os animais não – nem sua proteção – fazem parte da constituição vigenteOs animais serão sujeitos de proteção especial. O Estado deve protege-los,  reconhecendo seu sentimento e seu direito de viver uma vida livre de abusos, promoverá uma educação baseada na empatia e respeito por eles
EducaçãoArtigo 19,n º 15
Menciona como liberdade de ensino como o direito de abrir estabelecimentos de educação
Artigo 41
a liberdade de educação deve ser garantida e o Estado tem o dever de respeitá-la. Deve incluir a liberdade das mães, pais e tutores de escolher o tipo de educação para as pessoas a seu cuidado, respeitando os melhores interesses e a autonomia progressiva das crianças e adolescentes.
SaúdeArtigo 19, nº 9
Não se consagra o direito à saúde, apenas o seu acesso.
Permite o serviço de saúde com provedores privados, sem a devida orientação e fiscalização do Estado
Artigo 44
Consagra a saúde como direito e inclui sua dimensão física e mental.
O Estado regulará, supervisionará e fiscalizará as instituições públicas e privadas para assegurar uma saúde de qualidade
ÁguaArtigo 19 nº 24
A água está privatizada
 
Os particulares têm propriedade sobre ela
Artigo 134
A água é indispensável para a vida, por isso não será propriedade de ninguém em particular.
Todos e todas poderemos usa-lá de maneira democrática, participativa e equitativa
Crise ClimáticaNada DizSerá a primeira constituição do mundo que reconhece a Crise Climática e Ecológica. Atribuirá ao Estado tomar medidas para prevenir, adaptar e mitigar os danos causados por ela
Reparação ambientalA atual Constituição nada dizArtigo 128
Quem realize danos ao meio ambiente deverá ter que repará-lo, sem prejuízo das sanções administrativas, penais e civis que correspondam e estejam estabelecidas em lei
Participação ambientalNada DizArtigo 154
Todas as pessoas tem direito a participação informada em matérias ambientais e acesso a informação ambiental do Estado.
Os particulares deverão entregar a informação ambiental relacionada a sua atividade.
Pessoas IdosasNa constituição atual, as pessoas idosas não são consideradas, nem citadas.Terão direito de envelhecer com dignidade, obter aposentadoria suficiente para uma vida digna, livre de maus tratos por motivos de idade; a autonomia e independência e ao pleno exercício de sua capacidade jurídica.
AposentadoriasArtigo 19,nº 18
não garante o direito à previdência social
 
benefícios podem ser fornecidos por instituições públicas ou privadas, tais como as AFPs (Administradoras de Fundo de Pensão).
Artigo 45
a todas as pessoas será garantido o direito à seguridade social. A lei estabelecerá um sistema público de seguridade social para proporcionar proteção em caso de doença, velhice e outras contingências sociais. Ela garantirá a cobertura dos benefícios para aqueles que realizam trabalhos domésticos e de cuidado.
HabitaçãoA constituição atual não menciona nenhuma vez a palavra habitação.
Existe especulação imobiliária que possibilita o aumento dos preços da terra e empobrece as habitações
Artigos 51 e 78
Toda pessoa tem direito a habitação digna e adequada. O Estado assegurará a disponibilidade de terra para garantir esse direito e impedir a especulação.
Seguirá existindo propriedade sobre as habitações e esta continuará sendo hereditária  
Trabalho Doméstico e de assistênciaNada diz
Não reconhece as trabalhadoras domésticas nem o trabalho de assistência
Artigo 49 e 50
O Estado reconhecerá que os  trabalhados domésticos e de assistência são trabalhos socialmente necessários, contribuem com a economia e são indispensáveis para manter a vida.
Isto permitirá que se reconheçam os direitos trabalhistas às trabalhadoras que o exercem. Se garantirá mediante um Sistema Integral de Assistência
Crianças e adolescentesNão estão consagrados os direitos das crianças e adolescentes na constituição vigenteArtigo 26
Se consagram os direitos das crianças e adolescentes.
Terão direito a serem escutados, protegidos contra toda forma de violência, a viver em condições familiares e ambientais que lhes permitam o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade
EmpreenderArtigo 19,nº 18
 
Ela estabelece o direito de exercer qualquer atividade econômica que não seja contrária à moralidade, à ordem pública ou à segurança nacional
Artigo 80
todas as pessoas devem ser livres para se envolverem e desenvolverem atividades econômicas. Seu exercício deve ser compatível com os direitos consagrados na presente Constituição e com a proteção da natureza.
AnticonluioNada diz a respeito do conluio de empresas nem seu impacto na sociedadeArtigo 182
O conluio e as concentrações empresariais que afetem o funcionamento justo e leal dos mercados serão contrários ao interesse social.
Mandará a lei o estabelecimento de sanções aos responsáveis
RuralismoNão se diz nada sobre ruralismoArtigo 241
Se reconhecerá o ruralismo e suas formas de vida em relação direta com as pessoas, a terra, água e o mar.
Se promoverá o desenvolvimento integral dos territórios rurais e para a criação de políticas públicas, se considerará as comunidades para o seu desenho e realização
Inelegibilidade para cargos públicosPessoas condenadas por corrupção podem ser autoridades.Artigo 172
Não poderão optar por cargos públicos, nem de eleição popular as pessoas condenadas por delitos lesa humanidade, delitos sexuais e de violência intrafamiliar, delitos vinculados a corrupção e os demais que estabeleça a lei
Defensoria do povoNão se considera órgãos que protejam e promovam os direitos humanos das pessoasArtigos 123 e 124
Se criará a Defensoria do Povo que protegerá e promoverá os direitos humanos. Fiscalizará que os órgãos do Estado cumpram com suas obrigações nesta matéria e formulará recomendações de acordo com sua competência

A Universidade do Chile fez um hotsite comparando as duas constituições.

https://www.uchile.cl/noticias/189645/claves-constituyentes-que-dicen-las-normas

Entenda o que aconteceu

O processo da Constituinte Chilena foi uma resposta alinhada entre o parlamento e o então presidente chileno ao movimento que ocupou as ruas do país em 2019, conhecido como “estalido democrático”. A ação, denominada “Acordo pela Paz Social e Nova Constituição”, foi resultado de cerca de 30 horas de reuniões entre parlamentares de diversos partidos políticos e resultou num documento com 12 pontos-chave. A questão principal era a garantia da realização de um novo processo constituinte no país, por meio de plebiscitos.

Estallido Social: Foi o nome dado as massivas manifestações populares realizadas, inicialmente, contra o aumento da tarifa do sistema de transporte público. Começaram em Santiago e se espalharam por todas as grandes cidades do país. Aconteceram entre outubro de 2019 até março de 2020. Milhares pessoas foram presas, Mais de 300 olhos foram perdidos por violência policial. O então presidente Sebastián Piñera anunciou uma série de medidas para chamadas de “nova agenda social” e apoiou a articulação no parlamento da chamada por uma nova constituinte. Piñera declarou que havia “guerra a seu povo”. Atualmente Sebastian Piñera está denunciado na corte Interamericana de Direitos Humanos por violação de direitos humanos de perda de olhos.

Crédito: Rádio Havana

Em dezembro de 2019, o então presidente Sebastián Piñera publicou decreto que convocou um plebiscito constitucional. A votação foi adiada devido a pandemia da Covid 19, e só aconteceu em 25 de outubro de 2020. O voto no Chile não é obrigatório, mesmo assim, 50.9% da população compareceu às urnas. 78% dos votantes optaram pela Assembleia Constituinte.

Em 2021, nos dias 15 e 16 de maio de 2021, houve nova votação para escolher os membros da Assembleia Constituinte. Candidatos da esquerda e independentes somaram um pouco mais de 2/3 dos constituintes eleitos. A direita sofreu um baque e não conseguiu quórum de 1/3 necessário para aprovação de suas ideias.

Manifestações populares pressionaram por mais direitos e participação popular – Reprodução

A força dos candidatos independentes (constituintes não filiados a partidos, que são lideranças comunitárias e pessoas que ganharam projeção com os protestos de 2019) ficou demonstrada.

“No caso do Chile, representantes saíram das ruas, eram apolíticos, de lista, de pessoas que não faziam parte da política tradicional. Eles eram dirigentes sociais, sindicais. E eles começaram a construir uma constituinte que foi paritária. As mulheres tiveram 50% das cadeiras. Desde o início sabia-se disso. Contou com cotas para os povos”, comenta Victor Saavedra – dirigente do Colégio de Periodistas Chileno – equivalente ao Sindicato de Jornalistas no Brasil.

Crédito: reprodução Opera Mundi

Eleitos os 155 constituintes, os trabalhos iniciaram. O texto foi concluído e apresentado ao atual presidente chileno Gabriel Boric em 4 de julho de 2022. Desde o início dos trabalhos a disputa entre as visões de estado se apresentou. Ao final, duas campanhas pela aprovação e pela rejeição do texto constituinte foram para as ruas.

Primeira sessão presencial da Assembleia Constituinte do Chile – AFP PHOTO / SEGPRES / JUAN CARLOS CANCINO

Os trabalhos da Assembleia Constituinte

A assembleia constituinte foi constituída com paridade de gênero. Foram 154 membros eleitos. Povos indígenas tiveram seus lugares reservados. Sua composição teve como maioria membros identificados como com ideias de esquerda. O resultado foi um texto onde muitos dos direitos sociais reivindicados pelos Chilenos foi apresentado. Ele é, também, uma resposta aos protestos de 2019. Na proposta, buscou-se responder com menos desigualdade, maior acesso à saúde, aposentadoria mais justa, entre outras questões. Mas o povo chileno parece que não está satisfeito.

Opinião pública

No início dos trabalhos do processo constituinte, em 25 de outubro de 2020, 79% dos eleitores chilenos queria uma nova Carta Magna e 78% queriam que ela fosse elaborada por assembleia constituinte. No final de agosto, antes do “silencio eleitoral”, pesquisas diziam que a proposta será rejeitada. O “rechaço” – termo usado na cédula que será entregue aos eleitores estava em 45,8% segundo a pesquisa Pulso Ciudadano. Já 15,7% dos entrevistados ainda estavam indecisos.

Resultado Plebiscito em 25 de outubro de 2020

Mapa da votação do plebiscito de 25 de outubro em Santiago, capital do Chile, mostra que o rechaço à nova Constituição se concentrou nos bairros mais ricos / Divulgação

Resultado Pesquisa sobre votação plebiscito sobre o novo texto constituicional em 4.setembro.2022

Crédito: Poder 360

Posição do atual presidente do Chile, Gabriel Boric

O atual presidente, então, deputado Boric foi o único parlamentar de esquerda que votou com a direita para criar o processo constituinte. Ele foi muito criticado por isso. A pauta era plebiscito para fazer uma constituição nova, depois eleger os constituintes. A esquerda queria o impeachment. Não queria um processo de constituinte aqueles que estavam no poder. A pressão era forte.

Na sequência Boric tornou-se candidato à presidente. Na eleição, em segundo turno, estava perdendo, mas virou e foi eleito presidente. Seu programa de governo propôs a refundação da política. Contudo até o momento apenas conseguiu implementar a redução de alguns critérios excluintes dão acesso à política, como por exemplo, a proibição de que pessoas com tatuagem possam se candidatar a cargos públicos.

Boric apoia o novo texto constituicional.

O que acontece após o plebiscito de hoje?

Aprovado

Sendo aprovada a nova constituição o Governo terá dois anos para aprovar um projeto de lei que regularizará as mudanças propostas. O processo pós-plebicito foi desenhado para ser lento, para mitigar os conflitos sociais. Hoje o Chile está polarizado. A prioridade é que a água, educação e saúde.

Por exemplo: a água, hoje privatizada, se torna “direito universal de todas e todos os chilenos”. Para que isso aconteça o Estado deverá zelar pelo “uso razoável das águas” e as outorgas de uso da água passaram a ser concedidas com base na disponibilidade desse recurso essencial à vida. Dados apontam que hoje, no Chile, 1% dos de1% dos detentores do direito à exploração de água destinada à agricultura e à mineração concentram aproximadamente 80% de todos os direitos de uso.

Não Aprovado

Não aprovado, tudo continua como está.

E como seguirá?

Processo aberto, seja qual for o resultado da consulta de hoje, 4 de setembro, sabe-se que o processo não termina aqui.

Há dois acordos políticos: Se se o texto for aprovado, há o compromisso dos partidos que apoiam Boric a ajustar alguns pontos polêmicos da nova Constituição. Se não for aprovado, partidos de oposição se comprometeram a realizar reformas no atual texto constitucional.

A ver…

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