Venezuela não é Cuba, e Brasil não é Venezuela

Encruzilhada em bairro de classe média de Caracas: ruas vazias e grupos de mascarados - fotos de Luiza Lusvarghi

Por Luiza Lusvarghi*, especial para os Jornalistas Livres

A cena seria perfeita para um thriller de ação. Eu e Lorena (permitam-me nomeá-la desta forma) dentro de um carro, paradas num posto de gasolina, eu sem entender muito bem o que estava acontecendo, apavorada. Onde é que fui me meter? Seria sequestro?  Jornalista, pesquisadora, professora, brasileira, em minha primeira noite em Caracas fui a um restaurante de mariscos, assistir a um show e comer. Não foi por turismo. Lá, conheci Lorena, que se ofereceu para me guiar em meio ao caos. Ao chegar ao aeroporto de Maiquetia, fiquei quase uma hora para trocar 10 dólares, que seriam suficientes para pegar um táxi até o flat que eu aluguei em Altamira, no setor de La Castellana. A palavra bairro aqui designa favelas, comunidades mais pobres. “Por favor, diga urbanização”, me pede Lorena falando baixo e em pânico. Finalmente dois atônitos funcionários chegaram com um saco de dinheiro. Cada dólar está valendo 2.753 bolívares (no paralelo 8.900), e eles só tinham notas de 100. Como vou carregar isso? Perguntaram se queria uma bolsa. Pedi para que trocassem por notas maiores. Não tinham. Saí com aquele saco de dinheiro, sendo praticamente acossada por taxistas e sujeitos afins, todos querendo alguma gorjeta em “efetivo”.

A estressada Lorena, que encontrei no restaurante, se ofereceu para me trocar os dólares, pois eu jamais conseguiria dinheiro suficiente para trocar 100 dólares numa casa de câmbio oficial, e ganhou muito dinheiro com isso, conforme eu logo descobriria. Com hiperinflação, usar o cartão de crédito não seria uma opção muito interessante. Ela só conseguiu trocar 50, e assim mesmo com o dono do posto, que de repente apareceu do nada, abriu a porta e entrou no carro depois de olhar para todos os lados como se estivéssemos concluindo alguma escusa negociação com cocaína ou tráfico humano de pessoas. E dali, saímos correndo para o “super”. Cheguei no feriado de 24 de junho, Dia de la Armada Bolivariana, data de nascimento de Simon Bolívar. E o paro (greve) programado para hoje (26) e amanhã (27) foi articulado pela oposição para contestar a iniciativa de Nicolás Maduro de convocar uma Assembleia Constituinte para reformar a Constituição venezuelana no próximo domingo dia 30. As manifestações com esse perfil são chamadas de guarimbas, mas são na verdade organizadas por grupos de vândalos.

 

 

Lixo espalhado pela rua pelos oposicionistas, de modo a criar barreiras à circulação de carros e ônibus

No supermercado, muitas imagens me despertaram a memória dos inglórios tempos do Plano Real. Mulheres, famílias inteiras se lançavam pelos corredores, comprando tudo aos montes. Os importadores estão promovendo um locaute, e retiraram diversos produtos de circulação, porque não querem praticar os preços estabelecidos pelo governo. Não há pão por exemplo. Só arepas (o pão típico feito de farinha de milho). A indústria venezuelana não é tão desenvolvida quanto a nossa, quase tudo é importado. Tampouco há jornais de papel nas bancas. A mídia golpista exortou a todos a armazenar alimentos por conta do “paro” de dois dias. Pergunto se o locaute não é considerado crime. Ela não acha, aqui também não, infelizmente.

Fui convidada por Lorena a participar da manifestação da oposição em Altamira e fiquei imaginando a Paulista, com bandeiras e camisetas verdes e amarelas. No dia anterior, os manifestantes começaram a jogar entulhos pelas ruas, para garantir que os automóveis não circulariam. No dia marcado, entretanto, nada de famílias ou jovens de classe média portando bandeiras nacionais. O metrô operou normalmente, e o comércio funcionou de forma discreta, com portas fechadas. Alguns centros comerciais fecharam, para evitar confusão. A cada esquina, surgiam pequenos grupos de adolescentes e adultos (sempre homens) encapuzados à maneira dos traficantes nos morros, portando garrafas de gasolina, o molotov caseiro. Pareciam se conhecer, e de quando em quando um deles saía de uma esquina e ia pra outra checar a situação. Perguntei a dois diferentes rapazes que passavam rapidamente pela avenida Francisco de Miranda, a caminho do trabalho, na hora do almoço, quem eram essas pessoas, e obtive como resposta “essa é a suposta resistência”.

A polícia, que até então se limitou a ficar parada nas principais esquinas, em carros de patrulha comum, não tardou a chegar. Houve confronto, bombas de gás, os guarimbeiros avançam pelas ruas.  O que chama a atenção é que apesar de o governo de Maduro não ser unanimidade, nenhum cidadão minimamente decente participa das manifestações, como ocorreu no Brasil. Alguns permaneciam ao redor, a maioria ficou a olhar de longe, da janela. A síndica do prédio em que me encontro e o garçom da churrascaria nomearam aqueles grupos de “oportunistas” e gatunos. Nem todos concordam com o governo, mas a maioria não quer violência e teme o grupo de encapuzados, que se aproveitam da situação e assaltam as pessoas. Não percebem, no entanto, que esses “grupos de oposição” são extremamente organizados em seu vandalismo.

Enquanto isso, Lorena, que desistiu de trabalhar pois tem muito trabalho a fazer como cambista, planeja mudar com a família para Miami. De família de empresários, ela acha natural queimar ou retirar alimentos de circulação como forma de protesto contra o governo. Sonha com a queda de Maduro, mesmo sabendo que gasolina a 1 bolívar, e metrô a 4 bolívares não voltarão a existir. O importante é derrubar o governo, mesmo sem nenhum plano de transição, ou projeto econômico ou politico para colocar no lugar. O que me leva a pensar no Brasil do impeachment. Ela nunca andou a pé em toda a sua vida, mesmo antes de Maduro, nem entrou no metrô ou ônibus, não sabia quanto custavam, e tem pânico de entrar em qualquer lugar popular frequentado por pessoas sem a sua condição social. Tampouco frequenta as praias públicas de La Guajira, só o faz nas privés, que funconam como clubes fechados. Tem verdadeiro pânico de qualquer grupo de jovens mais simples que passem pelas ruas, e para disfarçar de vez em quando solta um  “Viva Chávez”.

Os canais de televisão oposicionistas mostram a “greve” no país todo. Os noticiários televisivos e a internet falam (mal) do episódio Despacito, em que os governistas adotaram para a campanha da Constituição a música mais popular do momento, de autoria dos porto-riquenhos Luis Fonsi e Daddy Yankee, que, indignados, soltaram uma nota dizendo que não autorizavam o uso da canção pelo governo Maduro e “seus crimes”. À parte a apropriação indébita do sucesso transnacional,  é inegável que Maduro é apoiado pelas camadas populares do país, assumidamente ou não. Ao final do dia, Freddy Guevara, o primeiro vice-presidente da Assembleia Nacional, deu uma entrevista considerando o movimento oposicionista vitorioso. A oposição teme as eleições de domingo, pois as bases de Maduro vão dominar o pleito. A oposição diz que é fraude, e que ele não tem esse direito. Tampouco consideram as organizações comunitárias como constitucionais. Maduro contesta e diz que está amparado pelo artigo 367 da Constituição. A oposição está conseguindo apoio de países, empresas, assustados com o que pode vir a ser uma Cuba. Na verdade, o maior problema é mesmo o petróleo, o ouro negro.

No plebiscito informal convocado pela oposição no dia 16 de julho, a população foi votar. Os votos foram todos queimados, mas a oposição anunciou que 98% da população votante se manifestou pela antecipação das eleições e contra as eleições do dia 30. A Avianca e a Delta suspenderam suas operações no País. O primeiro discurso que ouvi ao chegar, do taxista, era sobre o absurdo da bolsa família, pois estimulava as jovens mulheres a não trabalhar.  A indignação dele com as mulheres era algo assustador. Vagabundas, ele dizia. Perguntei se o país tinha escolas em tempo integral. Claro que não. Isso me lembra alguma coisa. Brasil?

Breve Glossário

Guarimbas – termo que vem de uma brincadeira infantil de esconde-esconde. Atualmente mais utilizada para designar as movimentações de grupos de oposição ao chavismo que atuam como desordeiros, e enfrentam a polícia com coquetéis molotov.

El Paro – Greve, na tradução. Mas o que aconteceu com o “Paro” chamado pela oposição foi na verdade um alerta para as pessoas ficarem em casa. Trata-se de um protesto organizado por setores representativos do empresariado.

Barrios – favelas, comunidades pobres, que ficam nos morros.

 

*Luiza Lusvarghi é jornalista, professora, critica de audiovisual, membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Mantém o blogue femmefatale.blog.br

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