Nos últimos anos, tem ganhado força no Brasil a discussão sobre a necessidade de renovação das lideranças políticas no campo progressista.
Por Leonardo Fontres e Felipe Teixeira
As eleições de 2020 na cidade de São Paulo mostram movimentos nessa direção que merecem destaque. O voto progressista e jovem migrou do PT para o PSOL, tanto na eleição para prefeito quanto para vereadores. Novas lideranças, mais afinadas às novas formas de organização política nas periferias, promoveram uma importante renovação na Câmara Municipal. No entanto, o funcionamento das máquinas partidárias e a lógica da política institucional na cidade seguem atuando como importantes limites para essa renovação.
Fundado em 1980, o PT consolidou mobilizações sociais em torno de três grandes “matrizes discursivas” presentes nas periferias de São Paulo: as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), formadas na esteira do catolicismo progressista da “teologia da libertação” e que deram origem a ONGs e associações de bairro; o “novo sindicalismo”, baseado principalmente na indústria metalúrgica e formado em oposição ao sindicalismo tradicional de base getulista; e uma intelectualidade progressista que tinha no marxismo sua principal referência teórica e no “trabalho de base” sua forma de atuação central.
Essas três matrizes passaram por importantes transformações ao longo das décadas de 1990 e 2000. O catolicismo perdeu adeptos para religiões pentecostais e neopentecostais e as CEBs foram enfraquecidas ou descontinuadas a partir de uma reorientação das diretrizes do Vaticano. O sindicalismo industrial sofreu importantes perdas em sua base de mobilização com a reestruturação produtiva e a flexibilização do trabalho que teve início nos anos 1990. A reforma trabalhista, aprovada em 2017, enfraqueceu ainda mais a estrutura sindical brasileira. Finalmente, a intelectualidade progressista se afastou das “bases” periféricas e, com a chegada do PT nos diferentes níveis de governo, passou a ocupar cargos importantes no Estado.
A bancada eleita pelo PT em 2020 expressa bem essa história por trás das bases do partido. Dos oito vereadores eleitos, três têm origem nas CEBs ou em ONGs (Alessandro Guedes, Jair Tatto e Juliana Cardoso), outros três, no movimento sindical (Senival Moura, Alfredinho e Arselino Tatto) e dois têm origem acadêmica e/ou no Estado (Eduardo Suplicy e Antonio Donato). Além disso, com exceção de Juliana Cardoso e Alessandro Guedes, todos têm mais de 40 anos.
Desde o início dos anos 2000, a principal novidade política nas periferias de São Paulo está na disseminação dos coletivos e movimentos culturais como novas formas de organização política. Na esteira do movimento hip-hop e da chamada literatura marginal, dezenas de grupos de jovens têm se organizado e produzido cineclubes, saraus, rodas de samba, slams, grupos de teatro, música, dança, entre outras manifestações culturais. Para além das desigualdades socioeconômicas que marcam São Paulo, esse coletivos dialogam com temas que têm se tornado cada vez mais centrais no debate público, como as questões raciais, de gênero e de direitos da comunidade LGBTQIA+.
A bancada eleita pelo PSOL em 2020 reflete em alguma medida essas mudanças. Dos seis mandatos conquistados pelo partido, apenas dois são originários daquelas bases tradicionais do petismo: Celso Giannazi (servidor público e sindicalista) e Toninho Vespoli (ex-militante de CEBs), justamente os dois que foram reeleitos. As outras quatro candidaturas eleitas pelo partido têm como base movimentos negros, LGBTQIA+ e coletivos culturais periféricos (Érica Hilton, Luana Alves, Bancada Feminista e Elaine do Quilombo Periférico).
Destaca-se ainda que as duas últimas são candidaturas coletivas – uma das poucas novidades recentes do sistema político brasileiro – que buscam apontar para formas mais horizontais e participativas de exercício dos mandatos legislativos. “Coletivos”, e não “movimentos” ou “partidos”, são, cada vez mais, as formas que jovens engajados politicamente nas periferias buscam se organizar.
Outra diferença entre as duas bancadas é o fato de que a do PT é inteiramente formada por vereadores reeleitos, enquanto a do PSOL é majoritariamente formada por estreantes na Câmara Municipal. Pela lógica estabelecida nas campanhas eleitorais, quem já possui um mandato tem muitas vantagens para alcançar a reeleição.
Uma delas é que um mandato parlamentar possibilita à liderança se dedicar exclusivamente à atividade política. Além disso, uma equipe contratada por quatro anos e o acesso a verbas de gabinete facilitam a organização da sua agenda. Outra vantagem é o acesso dos vereadores às emendas parlamentares, que lhes permite direcionar milhões de reais do orçamento público conforme seus interesses políticos e territoriais. Há ainda os critérios para a distribuição dos recursos do Fundo Eleitoral entre os candidatos de cada partido. As siglas tendem a destinar mais recursos a candidatos com maiores chances de se eleger, em geral, os que estão concorrendo à reeleição.
O sucesso da esquerda brasileira pós-redemocratização em angariar uma fatia crescente do eleitorado brasileiro, que a levou a conquistar por quatro vezes a presidência da república, se deve, principalmente, à capacidade de diálogo e abertura com aqueles que são, ou deveriam ser, o público-alvo principal das políticas públicas. No entanto, o próprio sucesso eleitoral engessou suas possibilidades de renovação, ao mesmo tempo em que ocorreram mudanças importantes em suas bases sociais, junto com a mudança geracional. Estar atento às pautas e formas de organização que emergem nas bases da sociedade e ser capaz de dialogar e se abrir a elas será um fator determinante para vitórias eleitorais do campo progressista daqui pra frente.
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Autores
Leonardo Fontes – Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ e pesquisador de pós-doutorado no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Felipe Teixeira – Gestor Público Municipal, Mestre em Economia pela UFRJ e Bacharel em Relações Internacionais pela USP.
Fotos: Sato do Brasil/Jornalistas Livres
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Eleições e Renovação 2020. Leia também:
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