Por que eu confio no Lula? Porque ele me chama de companheira

Lula chegando à Liderança do PT no Congresso com o pé engessado, na véspera da votação da emenda Dante de Oliveira Foto de Jorge Araújo/Folhapress

Por Júnia Lara, jornalista em Brasília

A primeira vez em que ele me chamou de companheira foi em 24 de abril de 1984. Eu não completara ainda 19 anos, cursava há menos de um ano a faculdade de jornalismo e Brasília, cidade onde vivia, estava sob Estado de Emergência. Na Esplanada, o então chefe do Comando Militar do Planalto, general Newton Cruz, “chicoteava” carros na tentativa desesperada de silenciar uma cidade que tocava buzinas e batia panelas desde as primeiras horas do dia, protestando contra as medidas de exceção decretadas uma semana antes pelo general Figueiredo, aquele presidente que preferia o cheiro de cavalo ao cheiro de povo.
Em meio a boatos de prisões de parlamentares e sob muita tensão, milhares de estudantes desafiavam a proibição de manifestações e aglomerações, se concentravam em frente ao Congresso Nacional e escreviam com seus corpos, no gramado, o slogan da campanha que ganhara as ruas em megacomícios e a adesão de 80% da população, a Diretas, Já!

Eu estava entre eles quando o presidente nacional do PT, Luiz Inácio da Silva, o Lula, líder sindical dos metalúrgicos, chegou para acompanhar a votação da emenda do deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT). Logo que ele saiu do carro, eu me aproximei e pedi, com a confiança dos jovens, que ele me ajudasse a entrar para assistir à votação das galerias. Com o pé engessado, ele se apoiou em mim, me tomou pela mão e disse “Venha comigo, companheira, vamos tentar entrar”.

Lula entre Afonso Arinos e Ulysses Guimarães em reunião extraordinária da Comissão de Sistematização da Constituinte em 25/6/1987 – Foto Câmara dos Deputados


Mesmo num tempo em que os seguranças da Casa do povo não usavam armamento pesado, não passei da primeira escadaria que dá acesso ao Salão Verde da Câmara dos Deputados. Lula seguiu em direção à Liderança do PT, onde conversaria durante todo o dia e noite com os líderes do movimento e artistas engajados na campanha por eleições diretas para presidente.
Uma esperança que reuniu no mesmo palanque patrões e trabalhadores, artistas e advogados, estudantes e professores. Na madrugada do dia 25 de abril, uma das mais tristes da história do Brasil, 113 deputados não apareceram para votar, a maioria do principal partido que apoiava o governo, o PDS. Faltaram apenas 22 votos para que a emenda alcançasse os 320 votos necessários para ser aprovada pela Câmara.
Naquele mesmo dia, Lula, em praça pública, garantia: “Companheiros, nós não vamos pedir licença para ninguém para lutar pela democracia neste país. Eles que nos aguardem, nós vamos voltar às ruas, vamos voltar às praças, vamos voltar às fábricas, nós vamos lutar em todos os lugares deste país pela democracia”. Adiada a eleição direta para presidente, a campanha mostrou o caminho para sepultar a ditadura: a mobilização da sociedade civil.
Essa união pela volta da democracia conseguiu o feito de eleger, no Colégio Eleitoral, o governador de Minas, Tancredo Neves (PMDB), de oposição, que morre antes de tomar posse. Por ironia da história, o primeiro presidente civil depois de 20 anos de militares foi José Sarney, que presidia o PDS governista até pouco tempo antes.
Coube a ele instalar a Assembleia Nacional Constituinte, em 1987. O brasileiro saciava, enfim, a sede de participação e expressão popular. Nunca a democracia havia sido tão pulsante. Pelos corredores das comissões, nos salões e gabinetes do Congresso circulavam os mais variados grupos de interesses, de corporações empresariais a sindicatos de trabalhadores, de indígenas a ruralistas, do avanço e do retrocesso.

Foto de Sérgio Lima/Agência Brasil

Jornalista recém-formada, transmitia para rádios do interior os debates que resultaram na chamada “Constituição Cidadã”. Reencontrei ali Lula, então o Constituinte mais votado do país. Incansável, estava sempre disponível para “os companheiros e companheiras” da imprensa. Liderados por ele, os 16 deputados do PT pareciam se multiplicar nas comissões e no plenário, em votações que entravam a madrugada.
A aguerrida bancada petista mobilizava os trabalhadores e os movimentos sociais contra os retrocessos que os ruralistas, os grandes empresários e os conservadores tentavam emplacar na Carta Magna em construção. Foi a primeira vez que o grupo que pratica a velha política do “é dando que se recebe” foi nomeado de “centrão”.
Ao final de 18 meses de intensos trabalhos, da tribuna da Câmara, Lula explicou por que o PT assinaria a Constituição, mas votaria contra o texto final: “O importante na política é que tenhamos espaço de liberdade para ser contra ou a favor. E o Partido dos Trabalhadores, por entender que a democracia é algo importante – ela foi conquistada na rua, ela foi conquistada nas lutas travadas pela sociedade brasileira –, vem aqui dizer que vai votar contra esse texto, porque entende que a essência do poder, a essência da propriedade privada, a essência do poder dos militares continua intacta… Ainda não foi desta vez que a classe trabalhadora pôde ter uma Constituição efetivamente voltada para os seus interesses”.
Setores conservadores, aliados ao poder econômico, criticou ele, divulgaram “mentiras e mais mentiras” nos meios de comunicação, para vender a ideia de que o País ia explodir tal a “quantidade” de conquistas que a classe trabalhadora havia alcançado no projeto da nova Constituição.
“Entramos aqui querendo 40 horas semanais e ficamos com 44 horas; entramos aqui querendo férias em dobro e ficamos apenas com um terço a mais nas férias; entramos aqui querendo o fim da hora extra ou, depois, a hora extra em dobro, e ficamos apenas com 50%, recebendo menos do que aquilo que o Tribunal já dava… Sobre a questão da reforma agrária… um texto mais retrógrado do que aquele que era o Estatuto da Terra, elaborado na época do marechal Castello Branco. Os militares continuam intocáveis, como se fossem cidadãos de primeira classe, para, em nome da ordem e da lei, poderem repetir o que fizeram em 1964”, vaticinou.
Catorze anos depois, após “teimar” por quatro vezes, Lula é eleito presidente do Brasil. Em sua primeira visita ao Congresso Nacional depois das eleições, foi recebido com festa por deputados, senadores e servidores. Ao chegar ao gabinete do líder do partido na Câmara abraçou a então chefe do pessoal da liderança do PT: “Não falei, baixinha, que um dia a gente chegava lá?”. Mais uma vez incluiu uma companheira em sua caminhada.
Na época, eu era repórter do Informes, informativo da bancada petista e ainda estava lá, desta vez no plenário da Câmara, quando, ao assumir em 1º de Janeiro de 2003, ele propõe um pacto social para acabar com a fome: “Transformemos o fim da fome em uma grande causa nacional, como foram no passado a criação da Petrobrás e a memorável luta pela redemocratização do país. Essa é uma causa que pode e deve ser de todos, sem distinção de classe, partido, ideologia. Em face do clamor dos que padecem o flagelo da fome, deve prevalecer o imperativo ético de somar forças, capacidades e instrumentos para defender o que é mais sagrado: a dignidade humana”.
Negociando com Sarney e companhia, conseguiu tirar o país do mapa da fome, e mais, o Brasil triplicou o PIB, pagou a dívida externa, acumulou reservas internacionais, houve ganhos reais no salário-mínimo e na renda média do trabalhador. Em dois mandatos, em nenhum momento ameaçou a democracia, não sequestrou poupança, não ameaçou a liberdade de expressão ou religiosa, nem adotou medidas autoritárias ou sigilo de cem anos.
Oito anos depois, saiu do governo com 87% de aprovação popular e fez sua sucessora, mas fez questão de dividir o sucesso da sua caminhada com companheiros de jornada. Atribuiu o êxito do seu mandato às ideias debatidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República, o chamado “Conselhão”, criado por ele para que diferentes setores da sociedade pensassem juntos políticas públicas para o país.

Lula em encontro com trabalhadores da Fiat e parlamentares mineiros durante os trabalhos da Constituinte – Foto Câmara dos Deputados


No dia 2 de dezembro de 2010, na última reunião daquele colegiado, ele agradeceu a “companheiros” tão díspares quanto Abílio Diniz, do Grupo Pão de Açúcar, e José Zunga, dirigente da Central Única dos Trabalhadores (CUT): “Na escada da democracia a gente não pode descartar nenhum dos degraus que nós já ultrapassamos, cada degrau é uma conquista, (…) que tem que ser soldada, tem que ser carimbada, para que faça parte da história, porque tudo que a gente abandona, tudo que a gente não valoriza nas nossas conquistas, termina se voltando contra nós. (…) darei testemunho, até o último dia da minha vida, da importância que vocês tiveram para os oito anos do meu mandato”.
Lula disse que a experiência do Conselhão devia servir de paradigma para uma democracia mais participativa: “Aqui não houve temas proibidos, aqui não houve discursos censurados, aqui ninguém discutia previamente o que cada um tinha que falar. Cada um se inscrevia, cada um falava o que queria e ouvia o que não queria…. alguns que no primeiro momento se sentaram como inimigos de classe, passaram a ser companheiros de Conselho, (…) de repente, estava todo mundo convencido que, além das diferenças, eram todos brasileiros….”, afirmou.
Poderia enumerar mais uma dezena de vezes em que vi e ouvi pessoalmente Lula reafirmar seu apreço pela democracia. Em sua trajetória política, que se confunde com a história da redemocratização do país, optou pelo caminho da conciliação e diálogo, desde a fundação do Partido dos Trabalhadores até agora, quando costurou uma ampla aliança para vencer toda a máquina do governo anterior e as mentiras disseminadas nas redes.
Mentiras que, renomeadas de “fake news”, são as mesmas desde que ele disputou pela primeira vez a Presidência e o acompanham desde os tempos de sindicalista, agora com a velocidade e técnicas de manipulação das novas tecnologias. O trágico é que às vezes fazem o que diziam que o PT faria quando chegam ao poder. Foi o caso do confisco da poupança e de parte do dinheiro da conta corrente por Collor. Esse, aliás, foi um boato que voltou com força na mesma semana em que Lula mostrou toda sua disposição de negociação, cedendo muito ao “Centrão” para aprovar uma reforma tributária possível
neste país tão desigual.
Sim, ele me chama de companheira, mesmo que nem saiba meu nome, mas não só a mim. Como político que aprendeu a negociar no chão da fábrica, em plena ditadura, sabe que nesse país nada se constrói se não vencermos a individualidade mesquinha e tacanha das elites, que bradam contra os direitos das domésticas e que ainda praticam o trabalho escravo em vinícolas renomadas.
Eu confio no Lula porque ele é a prova viva da capacidade do povo brasileiro quando lhe é dada a consciência de classe. Ele também gosta da vida, gosta de viver e quer que todos vivam bem. Como disse meu professor na academia de ginástica, ele tem pulsão de vida e não de morte. E isso faz toda a diferença numa democracia.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. “No Brasil denomina-se ‘ordem jurídica’ a proteção estatal dos criminosos contra suas vítimas.

    Nesse Desgoverno raríssimas pessoas têm o senso da justiça e da injustiça, da verdade e falsidade. Os demais substituem-no pelo de amizade e inimizade. Não condenam alguém por ser culpado nem o absolvem por ser inocente; condenam-no por ser inimigo, absolvem-no por ser correligionário. E não apenas fazem isso, mas imaginam que todo mundo age segundo esse critério, faz o mesmo que eles fazem, quer o mesmo que eles querem.

    Não é mais uma questão de “o brasileiro tem memória fraca”. Nenhum ser humano normal tem capacidade cerebral para manter frescos na mente todos os números da tragédia petista. 🇧🇷👉👹😈👿💩🤡😈👿💩👹

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