O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, num ensaio que dedicou às suas filhas, em determinado momento escreveu: “Não posso evitar a história”. Afirmava que a história havia decretado que ele era polonês e judeu e, com tais imposições arbitrárias, uma alta dose de incerteza em relação ao futuro.
Rudá Ricci, cientista político e presidente do Instituto Cultiva
Quando li essas palavras que parecem uma narração realista, pensei no decreto que a história acabou impondo a todos nós, brasileiros. Bauman, como sociólogo – e filósofo – sabia que não nascemos com essência, já que nossa inteligência nos “decreta” que somos responsáveis por nossas escolhas e omissões. Sartre dizia isso, afinal, que somos atormentados por nossas escolhas, por nossa liberdade. O que Bauman queria sugerir é que não temos como nos livrar do passado e da história dos vínculos sociais e da cultura em que estamos mergulhados.
Também não acredito que estivesse inaugurando um outro tipo de determinismo. Fernand Braudel já havia alertado para esta armadilha fácil. Numa proposta de currículo de história para alunos de ensino médio na França, o historiador francês havia posto as reservas para qualquer determinismo geográfico ao afirmar que é possível que várias comunidades tenham desafios semelhantes apresentados pela natureza – são muitas civilizações e culturas que nasceram em meio ao deserto ou às margens de rios ou mares –, contudo, as respostas que deram nunca foram as mesmas. Pela inteligência humana, criamos e construímos nossas escolhas, nossa essência moral. Bauman sabia disso. Sugeria que a questão da imposição da história não é a de proteger fronteiras, mas de construir fronteiras, construir realidades. A história de cada nação ou comunidade, afinal, impõe um roteiro, uma estrada, muitas questões que temos que responder ao longo de nossa trajetória comum.
Então, quais seriam as questões postas por nossa história de brasileiros? Gostaria de destacar quatro dessas questões capitais ou fundacionais do Brasil.
A primeira, é a escravidão ou o pensamento estamental. Não conseguimos pensar como sociedade moderna. Parece haver uma sina nacional de sempre nos referirmos ao outro pela marca da casta em que cada um nasceu. Pobre é pobre e negro no Brasil. Negro brasileiro, portanto, tem esta marca que o aproxima da construção simbólica que a Europa construiu para o judeu – da Rússia à Polônia de Bauman, passando por vários outros países que alimentou este preconceito. O Brasil adotou vários traços de cultura – ou ideário – estamental. Pensamos nossa sociedade organizada em segmentos amarrados à sua origem, algo bem distinto da lógica da sociedade em classes sociais: existem vestimentas, lugares para frequentar, alimentação, dialetos ou gírias específicas, enfim, uma série de marcas que definem o “lugar de fala e de existência”.
A segunda questão dada pela imposição de nossa história é, talvez, derivada da anterior: a combinação paradoxal da violência privada e a mansidão pública. Somos um país violento. Segundo o professor José de Souza Martins, da USP, somos campeões mundiais de linchamento. A violência doméstica, contra mulheres e crianças, é assustadora. O Brasil é o 5º país em morte violentas de mulheres no mundo, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). Perdemos para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato de mulheres. Em comparação com países desenvolvidos, aqui se mata 48 vezes mais mulheres que o Reino Unido, 24 vezes mais que a Dinamarca e 16 vezes mais que o Japão ou Escócia. Em nosso país, a cada 60 minutos uma criança ou adolescente morre em decorrência de ferimentos por arma de fogo. Nas últimas duas décadas, mais de 145 mil jovens, com idades entre zero e 19 anos, faleceram em consequência de disparos, acidentais ou intencionais, como em casos de homicídio ou suicídio.
Contudo, o grau de resiliência dos brasileiros em relação aos desmandos e arbitrariedades de governos e autoridades públicas parece patológico. As rebeliões e respostas de massa são raras num país que é, segundo a ONU, o sétimo em desigualdade social em todo planeta. A hipótese explicativa possível é o congelamento da desigualdade social e a cultura estamental que alimenta a noção que aqui vivemos num deserto sem fim, numa lógica circular em que filhos ou netos de ricos fatalmente serão ricos e membros da elite, assim como filhos ou netos de pobres serão também pobres e marginalizados socialmente. Se nada muda, se as elites sempre governam o país com nenhuma sensibilidade social, mas muita malandragem, por qual motivo seria crível uma rebelião popular alterar tal realidade? Então, a saída parece ser individual, familiar e com muita reza braba para que alguma saída mística esteja ao alcance das preces.
Do outro lado da ponte, nossas elites forçam – através da violência institucional ou de discursos que prometem a eterna receita de crescimento do bolo para a sua divisão posterior – uma conciliação de interesses. Com o fim da ditadura militar, a conciliação veio pelo alto, construindo o acordão que ficou conhecido como Nova República, um acordão que definiu limites para a esquerda e a direita, mas que foi quebrada com Jair Bolsonaro e os bolsonarista. Agora, nova promessa de estabilidade da política – e da desigualdade social e marginalização da massa de brasileiros – a partir de um impeachment de Bolsonaro que levaria ao bloco que já está no poder, no interior do governo Bolsonaro. Talvez, nós sejamos a única nação que entenda esta lógica lampedusiana de mudar para que tudo fique como sempre esteve.
Temos, ainda, a quarta questão: a luta pela sobrevivência e pela alegria como estratégia comunitária. Somos resilientes em demasia e para adoçar esta marca doentia, nos tornamos um povo alegre. Alegre pela dança, pela música, pela sexualidade, pela ironia, pela gargalhada. Uma alegria que flerta com a violência. Lembremos que até os blocos de Carnaval fossem reeditados pelas mãos de Villa Lobos, durante o Estado Novo, eram proibidos porque não “condiziam com a civilização” ou porque na disputa de estandartes de cada bloco carnavalesco, saíam alguns machucados ou até esfaqueados. A alegria exagerada e a violência andam juntas no Brasil, quando não abrem portas para o preconceito e o bullying explícito.
O que estou sustentando não é niilismo, mas a necessidade de alterarmos esses traços de nossa história que Bauman afirmou que não conseguimos nos livrar. Minha tese é que nossa saída é pela mudança do traço cultural, que é oriundo da presença cotidiana do mundo escravagista que nos divide em desigualdades cristalizadas. Aqui, nos diferenciamos do mundo líquido que o sociólogo polonês identificou nesse século XXI: no Brasil, a desigualdade social é sólida, uma tradição, tão coesa e palpável que não se corta facilmente. Talvez, pela educação em massa, pela formação do espírito cidadão, pela ousadia da produção artística, enfim, pelos meios que movem corações e mentes, mudemos esta tragédia. Contudo, pelo impeachment, este instituto legal criado pelas elites e para fortalecer seu poder sobre um possível governante que saia dos trilhos da nossa cultura estamental, nada será alterado. Com o impeachment, estaremos de volta ao Dilema de Sísifo, este esforço para mudar para que tudo fique como sempre foi.
Do mesmo autor:
2 respostas