Imagens de um período negro da nossa história… Arquivos públicos, vidas guardadas e remexidas
Em 2016, ao chegar no Arquivo Público do Estado de São Paulo, na Zona Norte da cidade, pedi à atendente a busca pelo nome de meu pai, Ricardo Zarattini, um dos 15 presos políticos trocados no sequestro do embaixador norte americano em 1969. Ela me entregou umas 4 pastas grossas cheias de relatórios, documentos e fotografias. Depois de um tempo, pedi por curiosidade boba, se por acaso haveria algo com meu nome, uma vez que eu tinha sido presa numa passeata estudantil no ano de 1977. Um misto de surpresa, emoção e tristeza me invadiram ao me deparar com aquilo tudo depois de mais de 40 anos. Encontrar nossos retratos de identificação de passagem pelo famigerado Deops (Departamento de Ordem Política e Social), polícia política mais antiga do país, gerou uma palpitação e um interesse sem fim para checar como os algozes da ditadura militar viam as pessoas que perseguiam.
Munida da minha câmera, saí fotografando tudo que pude. O retrato 5 x 7 de meu pai, completamente descabelado, visivelmente debilitado, olhos fundos. O meu, aos 15 anos, de camiseta Hering amarela que até hoje me lembro, como se fosse hoje, do seu tom desbotado e daquele óculos de grau que me recusei a tirar na hora do clic, rs… – como se ele fosse me deixar menos “identificável”.
Meu pai nos deixou no dia dos professores, 15 de outubro de 2017. A saudade e a falta que ele me faz é imensurável. Fiquei com seus objetos pessoais que juntei às imagens que fiz lá no Arquivo do Estado e as imprimi em papel sulfite. Sua carteira de deputado federal na cela do antigo Deops, hoje Museu da Resistência. Seus óculos e relógio de pulso em meio aos nossos retratinhos. Sua medalha de politécnico da USP no documento que o acusa de “instrutor de guerrilha e técnico em explosivos”. Medalhas que recebeu pela luta revolucionária em favor dos desfavorecidos na cela em que presos políticos cravaram como puderam os nomes dos verdadeiros heróis: Marighella e Lamarca. A carteira que lhe dei de presente de aniversário e que usou até o fim da vida…
A cada situação adversa, a cada absurdo do desgoverno genocida, a cada notícia que nos deixa de cabelo em pé tamanha destruição cultural e ambiental em nosso país, a cada golpe de PECs, a cada manifestação de racismo, xenofobismo e misoginia…, me agarro a essas imagens, a essa memória. Avante!
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Mônica Zarattini: #DitaduraNuncaMais
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Minibio Mônica Zarattini
Ativista do coletivo Fotógrafos pela Democracia. Doutora em Artes/USP. Mestre em Comunicação/USP. Fotojornalista e editora do O Estado de S. Paulo e JT por 26 anos.
Prêmios: III Prêmio Embratel de Fotografia, XXIII Prêmio Vladimir Herzog, 2001. Fotolivro: Plano, seco e pontiagudo, 2018. Exposição: Viva la Diferencia! Museu da Ciencia de Barcelona, 2007. Integra acervos do MAM-SP e Museu do Futebol de SP.
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Para conhecer mais o trabalho da artista Mônica Zarattini
https://www.instagram.com/monicazara/
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O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos e imagéticos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, recriar seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, de quintal, de rua, documentação desses dias de novas relações, essenciais, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente. Um universo.
Outros ensaios deste projeto: https://jornalistaslivres.org/?s=futuro+do+presente