Sexta-feira, fim de expediente, 8 da noite. A conversa começava animada em uma mesa do Café Girondino, no Centro Histórico de São Paulo. Nos copos havia gin, vinho ou vodca, e o aroma do pastelzinho frito sobrepunha-se ao do provolone e do salame. Aquilo tinha cara de encontro de amigos para falar de alguém da turma que estava ausente. Acabaria nisto, não fosse uma página da história do Brasil aterrissar naquela mesa. Três personagens da happy hour pariram – sim, pariram – a “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, que mobilizou a cena política nacional, tomou grandes proporções com um milhão de assinaturas e foi lançada na última quinta (11/8), na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco.
Ao saíram do bar depois da meia-noite, os três homens, na faixa dos 60 anos, não imaginavam que a ideia cresceria tanto. Na realidade, o juiz federal Ricardo de Castro Nascimento e seus colegas da São Fran – os advogados Antenor Maschio Júnior e Roberto Vomero Monaco — se reuniram a pedido de outro estudante de direito da mesma época: o deputado Paulo Teixeira (PT-SP). Em ligações feitas a cada um, o parlamentar pedira ajuda para aglutinar apoio do mundo jurídico a sua candidatura à reeleição. Ele era o ausente de quem falavam.
Mais um sinal de que a noite se tornaria inesquecível: a presença de Vitão, 76 anos, figura icônica, brincalhona, querida por várias gerações de alunos, e que há 44 anos trabalha como assistente técnico do departamento jurídico do Centro Acadêmico XI de Agosto. Ele é o protagonista permanente da tradicional Peruada, que sai às ruas centrais da capital paulista com um trio elétrico, arrastando universitários e o público geral. O cortejo acontece sempre na terceira semana de outubro desde os anos 1930, “com um propósito político, circense, etílico e carnavalesco”, ressalta Vitão. A cada ano, uma reivindicação ou denúncia vira tema tratado com humor, como foram os pedidos de anistia e de eleições diretas para presidente.
Negro, alto, elegante, dançarino, cantor, Vitão (ou Benedito Vitor Januário dos Santos) entrou na vida dos estudantes um ano depois de o professor Goffredo da Silva Telles ler, em 1977, a “Carta Aos Brasileiros” que serviu de inspiração para o documento gerado a partir do Girondino. “Eu acho ela o máximo”, diz. Vitão. “E por causa da carta, virei amigo das filhas do professor Goffredo e dele também.” Enquanto o mestre esteve vivo, a Peruada passava pelo Viaduto do Chá, pela Praça da República e parava na avenida São Luís. “O doutor Goffredo morava lá. Saía de casa e vinha ler a carta na calçada pra gente. Era o ritual de todo ano”, recorda.
Entusiasta do gin, foi ele quem quebrou a hegemonia do vinho na mesa do Café Girondino, onde também estavam a defensora pública Maíra Coraci, a advogada Mylene Gambale e a pedagoga Iara Maschio, mulher de Antenor. “Bastaram alguns goles para começar a rolar uma sessão de terapia de grupo”, conta Antenor.
Uma geração que resolveu reagir
Às 22 horas, o bar fechou as portas, a mesa pediu uma nova garrafa de vinho, Vitão acrescentou soda na vodca e fluiu um desabafo mútuo. Monaco, que entre eles é Tatuí, pôs na roda sua profunda tristeza com relação ao efeito Bolsonaro. Temas dolorosos pipocaram. Falaram em genocídio, desemprego, fome, obscurantismo, corrupção e toda desgraceira que empurra os brasileiros para o buraco ou para a indigência. “Fizemos mea culpa”, lembra Antenor. “Nossa geração, que buscou afastar o regime militar de 64, andava muito quieta, calada.” Os amigos não economizaram em palavras de baixo calão para extravasar o que os incomodava no país atirado ao autoritarismo. Ricardo lembrou episódios em que eles lutavam, intelectualmente, contra a ditadura. Logo se lembraram de colegas que tinham desaparecido. Neste instante de fervura alta, Tatuí falou: “Peraí!” Fez um suspense, e atirou: “A gente devia resgatar a “Carta aos Brasileiros”, do Goffredo.”
Do grupo, Tatuí foi o único que assistiu à leitura do documento, emocionada e contundente, feita pelo mestre, em plena ditadura. Os outros dois entraram na faculdade no ano seguinte. “A ideia do Tatuí foi como um raio caindo ali na mesa. Aconteceu uma explosão de adrenalina em todos nós”, lembra Antenor, que soltou um palavrão, daqueles que funcionam como catarse, confirmam um grande achado. “Cara…! Isto pega o ponto nevrálgico do que estamos conversando aqui”, disse. Vitão contou lendas que cercavam a carta, e daí para frente foi só conversa etílica de bar. Pagaram a conta do boteco, saíram alívios por terem encontrado o caminho.
Onde Bolsonaro foi vaiado
Mundo pequeno, este da política. Na semana seguinte, já no mês de junho, eles se encontraram na Rua Pires da Motta, Aclimação, na mesma churrascaria que seria escolhida por Bolsonaro, em agosto, e onde o presidente da República foi retumbantemente vaiado.
Na Laço de Ouro, o encontro dos que pensavam na carta já estava ampliado, com mais gente colocando lenha no fogo. Definiram que a festa para Teixeira seria na Lapa, para 200 pessoas, marcaram data e tiraram o deputado da pauta. A urgência do país era muito maior. “Começamos a pensar no teor da nova carta”, recorda Ricardo. “Ela precisava ser suprapartidária, atrair gente de todos os lados, ser plural.” Antenor brincou com Ricardo: “Eu sou advogado, defendo partes. Tenho uma questão emocional envolvida. Você é juiz, não pode ter partes.” As ponderações na churrascaria eram de que o texto não devia ser de centro, nem de esquerda, muito menos radical. “O negócio é ‘fora Bolsonaro’. Depois a gente vê o que faz”, cutucou Antenor.
O trio não se lembra bem, mas deve ter sido Tatuí quem sugeriu que Ricardo e Antenor escrevessem, cada um, sua versão. “Fiz o primeiro esboço e dia 20 de junho passei para eles”, recorda Ricardo. Antenor – que no dia 8 de agosto, no ato público de lançamento da carta, conduziu seu amigo padre Júlio Lancellotti à entrada do evento – escreveu um texto “nada radical”, mas sintonizado com o espírito do Brasil que tem pressa, como os famintos que o padre atende nas ruas sujas da cidade.
Seduzir a Faculdade de Direito e incluir as mulheres
Reconhecido como um gentleman, Tatuí leu ambas, e, com sua verve inglesa, deu palpites, acrescentou coisas, estendeu para a opinião de amigos que acompanhavam o processo. A carta do juiz, com ajustes dos outros dois, prevaleceu. “Quem sabe a gente consegue umas mil assinaturas”, disse Tatuí. Ricardo jogou mais alto: “E se a gente levasse para o Campilongo (Celso Fernandes Campilongo, diretor da Faculdade de Direito) para que a instituição encampasse o documento?”
Foi o que aconteceu. Para a empreitada ser bem-sucedida, buscaram nomes que pudessem conquistar Campilongo e estabelecer interlocução mais ágil com ele. Acharam que cairiam bem na missão Antonio Roque Citadini, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, e Luiz Antonio Marrey, ex-procurador-geral de Justiça e ex-chefe da Casa Civil paulista.
“A partir da reunião de Ricardo, Marrey e Citadini com a direção da faculdade, e para benefício da democracia, os acadêmicos tomaram para si a autoria do texto. Ficamos como anônimos”, conta Antenor. “Mas precisava ser assim para a carta ir mais longe.”
O título não contemplava as mulheres. Foi Satie Wada, esposa de Ricardo, quem alertou. Tinha razão: o país não tolera mais nada que exclua as brasileiras. Logo depois, Marrey fez defesa na mesma linha, e estava pronto o documento, sob o potente brasão da Faculdade de Direito da USP. O texto, com breves retoques, é aquele que os 3 do Girondino conceberam.
No dia 26 de julho, saiu da academia com 3 mil assinaturas para a adesão do público. Ao ser lançada no Largo de São Francisco – e lido em universidades, praças e ruas do país – a Carta às brasileiras e aos brasileiros tirou o sono de Jair Bolsonaro, de seus filhos e de seus militares.