Por JÚLIA AGUIAR, especial para JORNAL METAMORFOSE
“Às vezes eu não sentia tirarem minha roupa, eu não sentia nada, eu acordava do nada sem roupa ou sentindo uma penetração. Eu me pergunto até hoje quem tirou minha virgindade, provavelmente eu era muito novinha, então não sei se foi ele [o tio] ou se foi outras pessoas que também abusavam de mim”, narra Neide Almeida (nome fictício) ao Jornal Metamorfose. Neide é uma mulher quilombola, ela explica que começou a ser abusada aos 8 anos de idade – sempre enquanto dormia – por homens de sua comunidade.
Infelizmente, a história de Neide é recorrente no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, 84,1% dos casos de estupro e abuso sexual são praticados por parentes ou conhecidos da vítima. Só em 2019 foram registrados 66.123 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável nas delegacias de polícia.
A pesquisa também pontua que 57,9% das vítimas tinham no máximo 13 anos de idade, 18,7% das vítimas tinham entre 5 e 9 anos e 11,2% eram bebês de zero até 4 anos de idade.
É o caso de Dandara (nome fictício), que sofreu um estupro coletivo em 2008, quando tinha apenas 13 anos de idade. Dandara, que é filha de evangélicos, era uma menina que usava roupas largas e uniformes bem maiores que seu tamanho para que as roupas não marcassem seu corpo. Ela contou em entrevista ao Jornal Metamorfose que gostava de um garoto “popular” na escola, um dia ele chegou nela e perguntou se ela transaria com ele. “Garoto nenhum nunca me dava moral, se esse era o preço para ter alguma atenção masculina eu estava disposta”, explica Dandara ao JM.
Um dia, Dandara saiu da escola e foi com Tiago (nome fictício do abusador) para a casa de um colega dele. “Eu estava radiante, sonhando com a primeira vez… Cheguei na casa do amigo dele e já tinha mais 5 meninos na casa, eu demorei um pouco para entender o que estava acontecendo e até hoje não sei se eles planejaram. Quando eu já estava no quarto com o Tiago veio um adolescente amigo dele, que me dava asco só de olhar e falou que eu teria que transar com ele também. Eu tentei resistir disse que não queria, ele segurou a minha mão e falou para parar de frescura e eu não tive muita reação. Eu não sei porque eu não lutei, aí quando ele já estava em cima de mim chamou um outro adolescente da mesma escola que a gente, ele era insuportável eu detestava ele, quando eu vi esse menino tentei levantar, mas eles começaram a me ameaçar falaram que iam contar tudo na escola, que iam contar tudo para minha mãe. Considerando que a minha mãe me espancava a ponto de ficar os rasgos abertos na minha pele eu preferi continuar lá. Foi aí chegaram mais 2 meninos e depois mais 3, nesses últimos 3 tinha até um menino de 9 anos”, relembra Dandara.
Dandara conta que em um determinado momento, 9 meninos estavam dentro do quarto esperando sua vez para estupra-la. “Um deles chegou a colocar o pênis entre os dedos do meu pé, eu me lembro até hoje o nojo insuportável. Quando saí do quarto os que já tinham ficado comigo estavam sentados na sala em grupo vendo filme pornô e batendo punheta. Eu me vesti e fui embora para minha casa sem poder contar isso para ninguém, foram anos carregando a culpa de um abuso que eu não tinha culpa alguma”.
Segundo o Anuário Brasileiro de Violência Pública (ABVP), 56.263 mulheres foram estupradas no Brasil só em 2019, no ano anterior foram registradas 5.966 tentativas de estupro. A cada 8 minutos uma mulher é violentada sexualmente no país, porém, o número de casos é muito maior do que os registrados nas delegacias brasileiras.
“Estes números, no entanto, dão conta apenas da face mais visível dos crimes sexuais, aqueles que são notificados as policias. Há anos chamamos a atenção para a imensa subnotificação que cerca o fenômeno, fruto do medo, sentimento de culpa e vergonha com que convivem as vítimas; medo do agressor e até mesmo o desestímulo por parte das autoridades”, afirma o ABVP de 2020.
No livro “Abuso: a cultura do estupro no Brasil”, a jornalista Ana Paula Araújo afirma que os casos de estupro no país podem ser até dez vezes mais do que o notificado pela polícia, isso ocorre porque as vítimas se sentem culpadas e a maioria das mulheres tem vergonha de expor o que aconteceu.
Os casos de violência domestica também aumentaram em 2020, segundo o ABVP, uma agressão física contra mulher é registrada no Brasil a cada 2 minutos, só durante o ano passado, foram registrados 266.310 casos de violência. Quanto ao feminicídio, houve crescimento de 7,1% em relação aos casos de 2019, sendo mulheres negras 66,6% das vítimas e 56,2% das vítimas tinham entre 20 e 39 anos, em sua maioria elas foram assassinadas por companheiros ou ex-companheiros, somando 89,9% dos casos.
Para Sarah Oliveira Pires, 26, que realiza pesquisa sobre a violência contra a mulher no núcleo de psicologia na Universidade Federal de Goiás, o grande problema é que a maior parte das vítimas de violência sexual tem medo de denunciar o abusador. “Em minha pesquisa, um dos dados mais alarmantes é que o maior índice de violência sexual acontece dentro de casa. O abusador normalmente faz parte do núcleo familiar (filhos, pais, tios, avós). Isso acaba sendo muito problemático, a vítima sofre violência onde supostamente ela deveria ter segurança, sendo pior ainda quando você não consegue ter um suporte, porque você não tem com quem contar”, explica a estudante em entrevista ao Jornal Metamorfose.
A situação se agrava em cidades e comunidades pequenas, principalmente as que não têm uma delegacia da mulher ou órgãos governamentais que estejam preparados para acolher mulheres vítimas de agressão sexual. Neide Almeida, que é de um pequeno povoado quilombola no município de Cavalcanti, na Chapada dos Veadeiros (GO), conta ao JM que as mulheres ficam a mercê da violência. “Cidades pequenas não tem apoio, não tem investimento nenhum e você acaba tendo medo de falar sobre os abusos. Eu tinha pavor de contar para minha mãe que eu estava sofrendo abusos sexuais, porque o povo quilombola é muito fechado, muito rígido, são pessoas muito machistas, eles acham que as mulheres sempre são as culpadas. Eu preferi guardar praticamente minha vida inteira, sem nunca ter contado pra ninguém”, desabafa Neide (nome fictício) em entrevista ao Jornal Metamorfose.
Segundo a psicóloga e psicanalista Adriana Duarte, 52, a cultura brasileira reforça cotidianamente que a culpa é da vítima que sofre abuso sexual. Por esse motivo, a vergonha e medo que as mulheres sentem é derivado de um longo processo histórico de silenciamento. “Muitas vezes a própria família da vítima impõe o silêncio, as vítimas têm medo de denunciar porque a culpa será dela”, conta a especialista em entrevista ao JM.
Adriana explica que existem dois tipos de molestador: o ocasional, que vê uma ocasião para molestar e o sistemático, que pratica abusos cotidianamente. “Acontece muitas vezes por oportunidade, por uma impunidade ou por desequilíbrio psíquico”.
Para Janaína (nome fictício) o problema é a impunidade que a sociedade garante aos abusadores. “Todos sabem que acontece, mas como isso não é conversado e de nenhuma forma enfrentado, os homens fazem o que querem porque se sentem seguros”, desabafa em entrevista concedida ao Jornal Metamorfose.
Janaína começou a sofrer diversos abusos sexuais, psicológicos e raciais aos 11 anos de idade. Aos 14 foi abusada pelo próprio pai dentro de um carro enquanto iam para a feira, onde ela e a irmã trabalhavam. “Ele começou a passar a mão nas minhas pernas, até que enfiou a mão dentro do meu short, me senti sem saída, com muito medo e um mix de sentimentos”.
Acolhimento
No Brasil, a violência sexual é considerada pela lei como qualquer ato ou contato sexual onde a vítima é usada para a gratificação sexual do agressor sem seu consentimento por meio do uso da força, intimidação, coerção, chantagem, manipulação ou ameaça.
Os dados do Anuário Brasileiro de Violência Pública (ABVP) de 2020 revelam que 70,5% dos casos de violência sexual registrados no país foram classificados como estupro de vulnerável. Ou seja, pela determinação dada pela Lei 12.015/09, tratam-se de casos que envolvem vítimas menores de 14 anos de idade ou pessoas que não possam oferecer resistência ao ato.
Em relação aos abusadores, o relatório afirma que 84,1% dos casos o autor era conhecido da vítima. “Isso sugere um grave contexto de violência intrafamiliar, no qual crianças e adolescentes são vitimados por familiares ou pessoas de confiança da família”, afirma o ABVP.
Para a psicóloga Adriana Duarte, uma das formas de prevenir que esse tipo de violência aconteça dentro do seio familiar é através de educação sexual para as crianças. “A educação familiar sexual é fundamental, porque a gente ensina as crianças a fazerem as denuncias. Com as crianças pequenas é trabalhado principalmente o que pode e o que não pode através de figuras lúdicas, assim o paciente para de ser vitimado porque a criança consegue se defender”, explica a especialista em entrevista ao Jornal Metamorfose.
Adriana ainda afirma que muitas mulheres sofrem abusos e não sabem classificar essas experiências como violentas por falta de conhecimento. É o que pontua Neide (nome fictício) sobre sua comunidade quilombola, para ela o maior problema é que muitas mulheres não sabem seus direitos. “Minha comunidade é muito pequena, lá não tem delegacia da mulher, não tem ginecologista, não tem médico. As mulheres precisam saber que elas tem essa oportunidade, essa forma de agir, acho que seria muito interessante se tivesse uma rede de apoio em cada comunidade, com incentivo ao empoderamento, tem mulheres que não sabem os direitos que elas tem, principalmente as mulheres que nem foram a escola”, explica em entrevista ao JM.
É através de mudanças no processo educacional que a violência contra a mulher irá desaparecer no Brasil, atualmente, muitas mulheres não conhecem seus direitos, algo que prejudica – e muito – o acesso as delegacias, a lei, ao amparo. Para Juliana Oliveira, 36, a solução é a longo prazo, “o corpo da mulher sempre teve dono, desde a bíblia. Eu acho que a solução é os pais educarem os filhos, eu converso com meu companheiro todo dia, se você tá numa rodinha com os amigos e alguém fala alguma coisa e você ri, você é conivente”.
Já para a estudante de psicologia Sarah Oliveira, 26, a esperança está nas pesquisas sobre o tema e na ampla divulgação de informações. “É um problema estrutural, eu acredito que quanto mais a gente falar sobre isso melhor, precisamos expor essas situações, enquanto a gente acreditar que não denunciar não vai resolver nada, enquanto não tiver uma rede de apoio maior para as mulheres, essa visão que a culpa é da vitima, é um dos únicos crimes até hoje que a vitima é culpada, colocada como pivô da coisa, precisamos estudar mais sobre isso. Precisamos de uma rede de apoio maior entre as mulheres, esse suporte mesmo de mulher pra mulher”, explica ao JM.
Esperança
Algo que chamou a atenção durante a reportagem é que todas as entrevistadas clamaram pela mesma coisa: não se cale! Abaixo, o recado das mulheres:
“A nossa sociedade não prepara homens para serem homens e sim para serem tiranos, a sociedade como um todo está adoecida. Portanto, se alguém ou algo te incomodou busque ajude e comprove que você estava certa, nunca foi sua culpa. Vítimas não são algozes, são sempre vítimas. Busque ajude, sempre que tiver dúvidas busque até achar, não deixe ninguém te parar nem te calar” – Adriana Duarte, 52, psicóloga e psicanalista.
“Hoje eu falo isso [sobre os abusos] abertamente, isso sempre aconteceu só que hoje temos mais denuncias, hoje a gente tem grupos de apoio. É educação, abertura, diálogo entre as pessoas, porque quando uma fala as outras também tem coragem de falar, talvez eu falando outra também vai ter coragem.Eu gostaria de poder abraçar todas vocês, não aceita, não se cale, não precisa ficar com medo, denuncie! Eu sinto muito mesmo por todas nós” – Juliana Oliveira, 26.
“Eu realmente acredito que pode sim existir uma mudança através da pesquisa, quanto mais informação a gente conseguir agregar a esse tema, como essa pratica é corrosiva na sociedade, como isso prejudica todos em uma sociedade. Eu espero que o meu trabalho agregue e que venha mais trabalhos nessa perspectiva” – Sarah Oliveira, 26, estudante de psicologia.
“Existem várias formas de acabar com a violência sexual infantil, uma delas é o diálogo. Tem que haver diálogo nas famílias! As crianças têm que se sentir seguras para falarem de qualquer coisa, elas devem se sentir acolhidas. Essa situação só vai mudar quando o sexo e o corpo deixarem de ser tabus, tenho certeza que muita coisa muda” – Neide.
“Eu me calei durante muito tempo por falta de apoio, por falta de compreensão, mas se tiver uma mulher passando por isso, o apoio a nós é muito grande. O apoio para mim naquela época era muito complicado, então assim, não passa por isso sozinha não, as mulheres estão do lado de quem passa por isso. Fala, eu passei a vida guardando pra mim e só guardei mágoa e rancor, nunca deixa de falar e expor, procura os direitos que a gente tem. Por mais que deveria ter mais delegacia da mulher, mas assim ainda existe apoio, por uma mensagem e uma foto a gente consegue se salvar e salvar outras mulheres” – Dandara.