“A peste, a fome e o desemprego encheram mais de pólvora o barril que é nosso coração periférico.”
Leite com lítio
No ano de 2015, depois de meses afastada do trabalho de professora de ensino fundamental na prefeitura de São Paulo, devido a uma crise depressiva grave e um possível burnout não diagnosticado, volto pra escola e, imediatamente, minhas capacidades cognitivas aumentam. Eu aprendi, por exemplo, que a doença mental me deixou mais bonita, porque, “ que linda!”, algumas das colegas me diziam. “Qual dieta você tá fazendo?”.
Elas me perguntavam em coro, e eu respondia com a calma trêmula de quem toma muitas tarjas pretas por dia:
– “Leite com lítio”. Ou, mais especificamente, naquela época em que não tinha ainda o diagnóstico de transtorno afetivo bipolar: “Sertralina com café e rivotril, de sobremesa”.
Nosso umbigo de mapinguari
Eu entendo as crianças de Gaza, comendo terra e arbustos pra tentar sobreviver ao genocida Netanyahu, porque pertenço a uma geração e a uma classe social que passou muita fome e enfrenta ainda um longo processo de genocídio. Fome brava, de comer farinha seca, pasta de dente, tinta de parede e raspar gelo de ozônio da geladeira pra comer com açúcar, escondido da mãe – não porque ela dissesse que ia estragar os dentes, porque a saúde bucal e a estética não nos importavam, mas sim pra ela não saber que ia faltar o de adoçar o café no dia seguinte.
Para os pobres e miseráveis da segunda metade do século XX (dá-lhe Carolina Maria de Jesus), comida sempre foi artigo raro, regrado, dosado.
Na casa de uma família assalariada comum, por exemplo, a compra do mês precisava durar 31 dias e consistia em apenas 8 itens: arroz, feijão, café, açúcar, óleo, sal e macarrão com molho de tomate (estes últimos somente para exatos 4 domingos). Nada de frutas, nem legumes, nem carne, nem alimentos processados, como “danones”, bolachas recheadas, salsichas e enlatados.
Daí, na favela, quando alguém aparecia com comida diferente, essa pessoa era praticamente atacada com gritos de “metadinha! metadinha!” e precisava, antes de ficar sem rango, tendo que doar metade a metade, gritar uns dez “dô-nads”, ou então um “Não dou, não dou, não dou!”, em alto e bom som, porque nosso umbigo de Mapinguari* devoraria tudo o que estivesse a nosso alcance.
Pelo menos eu morro feliz
Um dia, a gente brincava no beco, em frente ao barraco, e um primo nosso apareceu com um yakult. Um yakult!
Gente! Leite fermentado era um dos nossos maiores sonhos de consumo, assim como big macs, leite moça, gelatina e bife com batata frita.
Só que meu primo era bem vacinado e foi logo gritando um “dô-nads!”, e não dividiu um único gole com nenhuma das outras (pelo menos dez) crianças que imploravam pela partilha.
“Você vai morrer tomando yakult”, foi a praga-sentença atirada. “Mas pelo menos eu morro feliz”, foi a resposta dele, incontornável, definitiva.
Quem vê corpo não vê coração
Isso de nunca ter alimento em quantidade e variedade suficiente, mais todas as outras violências de classe e raça, obviamente, fez de nós, pobres, alvo fácil de doenças físicas e mentais relacionadas à má alimentação, como anemias, pressão alta, cardiopatias, avc’s, desnutrição e obesidade.
Esse histórico também diferencia nosso pensamento e atitudes, em relação às outras classes, mais privilegiadas. Nosso cérebro entendeu que, de fato, precisávamos comer tudo o que estivesse disponível, sempre, porque no dia seguinte, muitas vezes, só poderíamos contar com as calorias e os nutrientes já acumulados. Por isso que hoje, mesmo não estando em risco iminente de morrer de fome, a maioria de nós, quando vê comida, simplesmente come. Comemos com ou sem fome, devoramos tudo, como se não houvesse amanhã, e adoecemos com a indústria de alimentos-lixos que nos são empurrados.
Daí a importância de se insistir em políticas de combate à fome, em cozinhas comunitárias, hortas orgânicas e distribuição de renda, porque a desigualdade social transformou minha geração, de um grupo de pessoas esqueléticas subnutridas, em um grupo com tendências à obesidade, à ansiedade e à depressão.
E daí que quem vê somente corpo – mediano, gordo ou magro – não vê saúde nem física, nem mental e, nem muito menos, financeira.
Eu não estava mais bonita quando voltei pra escola, queridas amigas. Eu estava talvez menos triste, menos ansiosa, com um corpo mais socialmente aceito como padrão e muito, muito medicada.
Como o amor em João Cabral de Melo Neto, meu umbigo de mapinguari urbano tinha devorado, naqueles meses ausentes do trabalho, muitos antidepressivos, muitos calmantes, dez quilos de gordura e músculos, mais meus versos, minha alegria e meu medo da morte.
*Leia “Notas sobre a fome”, a resenha e o livro de Helena Silvestre.
Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros “De passagem mas não a passeio” (2006), Zero a zero: 15 poemas contra o genocídio da população negra (2015) e Horas, Minutas y Segundas (2022), entre outros. Nas redes: @dinhamarianilda
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