Provão Paulista: oportunidade ou engodo?

Diante das desigualdades educacionais históricas no Brasil, tentativas de ampliar o número de estudantes egressos da rede pública no ensino superior é louvável. Mas não seria mais eficiente se o governo do Estado de São Paulo aumentasse as vagas destinadas ao testado e experimentado Enem, ao invés de tirar da cartola mais um exame eivado de contradições?

No primeiro semestre, o secretário de Educação do Estado de São Paulo anunciou, em reuniões com a Rede Estadual de Ensino (a maior do Brasil, com mais de 230 mil servidores e 3,4 milhões de estudantes), uma novidade que irá garantir, supostamente, vagas nas prestigiosas universidades paulistas aos discentes da escola pública: o Provão Paulista Seriado. “Não estamos apenas dando acesso ao ensino superior, e sim acesso às melhores universidades do país. A educação de São Paulo se orgulha de liderar esse processo de inclusão”.[1] Notícia bem-acolhida, pois o histórico de ingresso nas instituições públicas de ensino superior revela que muitos estudantes do Ensino Médio administrado pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, a Seduc-SP, não ingressam, em grande número, na USP, Unesp, Unicamp, Fatec e Universidades e Institutos Federais. Provável oportunidade até então não estendida de forma massiva ao contingente de 1,1 milhão de secundaristas. Mas como canta Gilberto Gil, “A novidade era o máximo do paradoxo”. 

O Decreto 67.941, que institui o exame, saiu somente em 15 de setembro, e já na epígrafe estabelece que o Provão Paulista Seriado está “no âmbito do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo – SARESP”. Evasivo em diferentes trechos, atribui ao Secretário de Educação futuras regulamentações de: “II – o conteúdo e metodologia do Provão Paulista Seriado; III – a participação de alunos de outras redes públicas no Provão Paulista Seriado; IV – as regras especiais sobre o Provão Paulista Seriado a que estarão submetidos os alunos cuja conclusão do ensino médio esteja prevista para ocorrer nos anos letivos de 2023 e 2024 correlatas.” (Artigo 7ª). Essas, só saíram tardiamente.

A proposta de prova seriada na rede estadual paulista como forma de ingresso ao ensino superior público não é novidade. Ocorre há tempos. Porém, sempre apresentou baixa adesão; e no contexto de uma enormidade de avaliações para mensurar, regular, intervir e padronizar a educação, aproveitar a prova do SARESP para esse fim aparentou racionalidade em prol dos estudantes, busca para diminuir as desigualdades educacionais e garantia aos discentes do prosseguimento dos estudos, conforme consta na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996.

O Provão Paulista Seriado destina-se a todos os estudantes secundaristas das redes públicas de ensino do país. Dirige-se, principalmente, aos discentes da rede estadual de ensino e das Escolas Técnicas Estaduais, as Etecs, inscritos automaticamente. Estudantes das demais redes públicas precisaram se inscrever individualmente e se deslocaram até a capital paulista para fazer o exame.

Seriada, aplicou-se, neste final do mês de novembro, a prova nos três anos do Ensino Médio – que resultará numa média para concorrer às vagas ofertadas pelas instituições públicas paulistas de ensino superior. Assim, os 1º anos fizeram a prova este ano e a farão em 2024 e 2025; os 2º este ano e no próximo; e os 3º anos somente este ano. Os conhecimentos exigidos no exame equivalem àqueles indicados no Currículo Paulista, este utiliza como referência a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ou seja, compreende os conhecimentos dos componentes curriculares da Formação Geral Básica. A prova, composta por 90 questões, abarcou questões de Linguagens e suas Tecnologias e Ciências da Natureza e suas Tecnologias no primeiro dia; e Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas no segundo dia. No caso dos 3º anos, acrescentou-se a feitura da redação. “O que mais motiva a gente nessa missão é poder dar vazão aos sonhos das pessoas e fazer com que sonhos se realizem. Os jovens têm o sonho de entrar na universidade porque ela é um passo para o sucesso profissional, a inserção no mercado de trabalho, emprego de qualidade e autonomia. A gente quer fazer esse sonho cada vez mais possível e que vocês alcancem esse sonho”[2], afirmou o governador a estudantes durante a solenidade no Palácio dos Bandeirantes. No entanto, “E a novidade que seria um sonho / O milagre risonho da sereia / Virava um pesadelo tão medonho / Ali naquela praia, ali na areia”.

Muitas dessas informações só foram publicizadas em setembro e outubro, véspera do exame,  agendado para os últimos dias de novembro. Isso provocou ansiedade e incertezas na rede paulista, especialmente entre os estudantes. Coordenadores pedagógicos e mesmo supervisores confessaram ter pouca ou nenhuma notícia sobre o Provão Paulista. As próprias universidades conveniadas só divulgaram a quantidade de vagas ofertadas recentemente: são 1.500 para a USP, 934 para a Unesp, 325 para a Unicamp, 2.620 vagas para a Univesp e 10.000 vagas para a Fatec[3]. A Seduc-SP apontou o ineditismo como justificativa para o açodamento.

Caco Argemi / CPERS Sindicato

Crédito: Caco Argemi / CPERS Sindicato

Não é possível justificar o atropelo de informações sobre o Provão Paulista ao seu ineditismo. Aliás, não é tão inovador assim. Copia parte da lógica do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem. Nos seus objetivos registra-se que: “I – democratizar as oportunidades de acesso às vagas oferecidas pelas instituições públicas de ensino superior; II – unificar os processos seletivos de acesso à educação superior, de modo a substituir os exames vestibulares isolados para os estudantes que tenham cursado o ensino médio exclusivamente na rede pública do Estado de São Paulo ou de outros entes da federação.” (Artigo 2º do Decreto 67.941, de 15/09/23). Talvez por isso, estudantes e educadores apelidaram o Provão Paulista de “Enem Paulista”. Todavia, o exame desenvolvido pelo governo federal apresenta uma proposta organizada e calcada em princípios de inclusão e equidade, ao contrário do placebo proposto por Tarcísio de Freitas.

Primeiro, o Provão Paulista coloca no campo de disputa pelas concorridas vagas, estudantes com trajetórias escolares díspares. Pesquisas sobre o aumento no número de egressos da rede pública da Educação Básica no ensino superior público apresentam que as vagas com o maior número de inscritos são ocupadas por egressos de redes que apresentam melhor estrutura comparadas às redes estaduais. No caso do Estado de São Paulo, os Institutos Federais, Etecs, Colégios Aplicação ligados às Universidades e Escolas Militares, que possuem, geralmente, vestibulinho para ingresso e recebem verbas provenientes de outras secretarias e ministérios[4]. O valor-aluno dessas instituições é quase o dobro daquele destinado ao discente das escolas administradas pelas Secretarias Estaduais de Educação. A inexistência de critério que reconheça essas diferenças por parte da Seduc-SP resultará, provavelmente, que quantidade substancial das 15 mil vagas ofertadas sejam preenchidas por estudantes dos Institutos Federais, Etecs, Colégios Aplicação e Escolas Militares, frustrando, mais uma vez, o contingente de 1,1 milhão de estudantes do Ensino Médio da rede estadual.

Não bastasse esses poros no processo do Provão Paulista, acentuando desigualdades educacionais, a Seduc-SP produziu emenda bem pior que o soneto. Estudantes das unidades do Instituto Federal de São Paulo, espalhados pelo interior paulista, tiveram que se deslocar à capital para a feitura da prova, estabelecendo, de imediato, um obstáculo financeiro àqueles jovens que não conseguiram migrar e permanecer na cidade de São Paulo por dois ou três dias. Dá com uma mão, tira com a outra. Frustra um outro contingente de discentes. Critérios planejados e publicizados com antecedência, resolveriam essas questões.

Segundo, as provas foram aplicadas durante o período matutino e vespertino, obrigando estudantes do turno noturno comparecerem à escola num outro horário, em pleno dia da semana. “… os alunos da 3ª série do ensino médio realizarão as provas do Provão Paulista Seriado, exclusivamente, no período da manhã; os alunos da 2ª série realizarão as provas no turno matutino; e da 1ª série no vespertino” (Resolução Seduc-SP, n° 43, de 29/09/23). É comum estudantes da noite trabalharem durante o dia e/ou realizarem curso técnico-profissional em outra instituição. Insensível à situação, em pleno final de ano, com costumeira movimentação econômica – principalmente no comércio -, a Seduc-SP sonega a possibilidade de prosseguimento de estudos ao montante discente que cursa o Ensino Médio no período noturno. Forma de inclusão excludente discutida por Acácia Kuenzer.[5] Além de cursos aligeirados no turno da noite, criam-se dificuldades para esses estudantes, que são, mais uma vez, negligenciados nos seus sonhos de imprimir uma outra trajetória: ingressar no ensino superior.

Terceiro, o Edital tira dos discentes que reprovaram de ano a possibilidade de pleitear uma vaga nas prestigiosas instituições paulistas de ensino superior público. “Será excluído do Provão Paulista Seriado o candidato que, em qualquer ano, reprovar em uma das séries do Ensino Médio”. O absurdo do item gera, inicialmente, a desconfiança de que se trata de um erro de escrita. Que o estudante não aprovado em determinado ano escolar poderá realizar e contabilizar a nota no período seguinte, desde que seja promovido de série. Mas não é isso que está registrado.

Michael Apple e Anita Oliver (1995) lembram-nos que “as políticas direitistas e suas consequências nem sempre são o resultado de iniciativas cuidadosamente planejadas (…). Muitas vezes elas têm um caráter acidental. Isso não significa dizer que não haja intencionalidade.”[6]

A política educacional do governador Tarcísio pasteuriza a massa de discentes da escola pública e deslegitima políticas que visam diminuir desigualdades históricas que persistem na sociedade brasileira. Na forma como se encontra desenhado, o Provão Paulista pode beneficiar, principalmente, grupos que já possuem certas condições materiais, educacionais e culturais, com renda per capita maior que a média nacional e alto nível escolar dos pais. O governo estadual não reconhece que dentro da rede de ensino há gradações profundas, com diferença de renda e de trajetória escolar. Os discentes da rede estadual estão em pé de igualdade para uma peleja tão disputada como esta? E as desigualdades educacionais intra-rede estadual, foram consideradas? Estabelecer critérios específicos que garantam a efetiva ascensão dos grupos historicamente alijados de políticas públicas faz-se necessário. Depois de 15 anos, os dados do Enem como forma de inclusão e ascensão social são pedagógicos. Não basta criar a política pública generalista, faz-se necessário instituir política pública que priorize grupos invisibilizados e marginalizados ao longo do tempo.

Diante das desigualdades educacionais históricas no Brasil, tentativas de ampliar o número de estudantes egressos da rede pública no ensino superior é louvável. Mas não seria mais eficiente se o governo do Estado de São Paulo aumentasse as vagas destinadas ao testado e experimentado Enem, ao invés de tirar da cartola mais um exame eivado de contradições?

Como as pessoas que assumiram a Seduc-SP e Tarcísio de Freitas possuem experiência em gestão pública, fica difícil acreditar que essas contradições são fruto de erros e ineditismo do Provão Paulista. Também não cabe o despautério de acusar de insanidade. Há método na loucura, nos ensinou Hamlet. Aparenta que o objetivo é criar um Enem sem critérios, à la carte do elitismo bandeirante. Estabelece obstáculos para a participação dos estudantes do turno noturno e aqueles que reprovaram de ano, excluídos duplamente. Sugestiona que esses não têm o direito de almejar o prosseguimento dos estudos numa universidade estadual paulista. O destino deles é se aventurar em empregos precarizados, eternizando-se no loop contínuo da exclusão includente. [7] Mas se esses cidadãos se esforçarem, dedicarem-se, irão necessariamente ascender, pois a oportunidade existe e sempre existiu e é para todos. Engodo pedagógico que camufla visão de mundo. Inclusão excludente escolar. Típico exemplo de modernização conservadora. “A novidade era a guerra / Entre o feliz poeta e o esfomeado / Estraçalhando uma sereia bonita / Despedaçando o sonho prá cada lado, oh-oh.”           

Rogério de Souza: Doutor em Sociologia pela Unicamp, escritor e professor no IFSP. Coordena o Grupo de Pesquisa em Educação Profissional (GPEP) do IFSP, Campus São Roque.


[1] SÃO PAULO. Provão Paulista vai dar acesso a 13 mil vagas nas universidades estaduais. [10/07/2023]. Disponível em:  https://www.educacao.sp.gov.br/provao-paulista-vai-dar-acesso-13-mil-vagas-nas-universidades-estaduais/. Acesso em 28/11/2023.

[2] SÃO PAULO. Provão Paulista vai dar acesso a 13 mil vagas nas universidades estaduais. [10/07/2023]. Disponível em:  https://www.educacao.sp.gov.br/provao-paulista-vai-dar-acesso-13-mil-vagas-nas-universidades-estaduais/. Acesso em 28/11/2023.

[3] SÃO PAULO. Provão Paulista: saiba tudo sobre a avaliação que garante vagas nas universidades públicas de SP. [05/10/2023]. Disponível em: https://www.educacao.sp.gov.br/provao-paulista-saiba-tudo-sobre-avaliacao/. Acesso em 25/11/2023.

[4] Ver: CENTRO PAULA SOUZA. Etecs conquistam mais de 2,5 mil vagas em universidades públicas. 29/03/2023]. Disponível em: https://www.cps.sp.gov.br/etecanos-conquistam-mais-de-25-mil-vagas-em-universidades-publicas/. Acesso em 26/11/2023; SALDAÑA, P.; TAKAHASHI, F. Apesar de cortes, institutos federais lideram nota do Enem em 14 Estados. [14/01/2018]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2018/01/1950323-apesar-de-cortes-institutos-federais-lideram-nota-do-enem-em-14-estados.shtml. Acesso em 25/11/2023.

[5] KUENZER, A. Z. Da dualidade assumida à dualidade negada: O discurso da flexibilização justifica a inclusão excludente. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 28, n. 100 – Especial, p. 1153-1178, out. 2007.

[6] APPLE, M., OLIVER, A. Indo para a direita: A educação e a formação de movimentos conservadores. In: GENTILI, P. (org.). Pedagogia da exclusão: Crítica ao neoliberalismo em educação. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 1995. 

[7] KUENZER, A. Z. Da dualidade assumida à dualidade negada: O discurso da flexibilização justifica a inclusão excludente. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 28, n. 100 – Especial, p. 1153-1178, out. 2007.

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