Minha parte eu quero em vida

O Café com Muriçoca de hoje saúda o poeta Binho e sua obra mais recente: Azterketa
Azterketa

Salve gente boa que me lê, apesar dos meus dilúvios. Outro dia eu andava aqui rebelada e pensando que, quando eu morrer, não quero nem saber de mulheragens nem de homenagens, minha parte eu quero em vida, eu dizia. Quem tiver que me ofertar reconhecimento, por favor, o faça agora, pois agora é justamente quando eu mais preciso.

Mas devo dizer que isso não vale para o casal Suzi e Binho, porque os dois oferecem reconhecimento, amizade e apoio o tempo todo, a mim e a pelo menos mais trinta poetas que acompanham o Sarau do Binho.

Não sei se vocês sabem, mas existem dois importantes saraus fundadores do que é esse grande movimento de literatura periférica que hoje vemos ganhar o mundo. Um deles é o Sarau da Cooperifa,  cujo mestre, Sérgio Vaz, está lançando livro novo, Flores da Batalha (Global Editora, 2023), com direito a exposição no metrô da cidade de São Paulo (faço uma resenha aqui pra vocês, quando tiver acesso à obra, que tal?). O outro é o Sarau do Binho, que leva o nome do seu fundador e ocorre uma vez por mês no Espaço Clariô de Teatro, além de circular por escolas e circuitos culturais.

Binho e Suzi, o poeta e a produtora, são os responsáveis por pavimentar  caminhos e acolher muita gente bonita, talentosa e necessária na região do Campo Limpo. Eles são um casal de tipo raro: o tipo que espalha gentileza, respeito e força – por onde quer que passe.

Suzi e Binho. Fonte: Arquivo Pessoal

Pode parecer pouco, mas é raro ver gente dispondo do seu tempo pra multiplicar alegria e investir nas potencialidades do próximo. Por isso, Suzi e Binho, eu saúdo vocês. Saúdo a alegria de vocês existirem e saúdo nossa amizade, em vida.

Vocês são pedra fundamental na construção dos castelos de muita gente, artistas ou não, da nossa grande Mãe Periferia.

Azterketa

Mas nem foi por isso que eu comecei a escrever este texto, apesar de querer saudar sim esse casal. Eu vim aqui mesmo foi compartilhar com vocês, com atraso, Azterketa (Selo Sarau do Binho/Editora Popular TXAI, 2021), um livro que tem cara de infantil, mas é unietário –  e essa palavra não existia ainda, mas agora está escrita e vai significar “para todas as idades”.

Azterketa, termo que no mítico idioma elengoa significa “exame, experimento e investigação” se trata justamente disso: uma grande experimentação linguística em que os dialetos das quebradas se misturam com o linguajar padrão, com a linguagem das cores e das artes visuais.

Como um grande fanzine colorido, Azterketa exibe os desenhos abstratos de Binho e páginas escritas à mão, no estilo caótico dos zines.

Sobre o texto literário, propriamente dito, eu os leio como uma longa e entrecortada conversa entre o poeta, seus sujeitos-poéticos e a vida. 

Binho se desafia:

Estou com medo de mim

Estou rachando ao meio

Mas não termino

        Antes do fim

Ele conta histórias:

O dia acordando por dentro de mim

Minha mãe me chama

– Levanta, menino!

Que o dia já subiu aos céus.

e reconta outras:

Borboleta

Um bicho

Ke andava 

Rastejando

Agora

A vô a

Binho também recria o caos do nosso cotidiano por meio das páginas-anotações de poemas e, nessas experimentações, ele assenta novos tijolos na construção do idioma periférico, da nossa linguagem favelada, negra, nordestina, latinoamericana, internética, subversiva e forte, como em:

Pintado a

Sol aberto

Ñ sei se tem 

Crase êste a

Antes do Sol

ou em:

O morro sem PERS P KITIVA no bagúio

– Carai, a linha chilena do Beiçola deu um rélo no varal da dona Lourdes

Penso que quando Binho escreve, ele incorpora vozes de todas, de todes nós, crias das periferias, por isso, porque inclui nossas singularidades, é que pode subverter a gramática, a semântica e a ortografia. Além disso, sua obra é coerente com seu atuar no mundo: um livro amoroso, colorido, agregador e ousado. 

Os poemas são curtos, enigmáticos e exigem leituras e análises que não farei aqui porque este não é um trampo de faculdade. Mas essa exigência é só porque os fragmentos de conversas, ali tornados versos, nos impactam, nos espantam e dão aquele comichão, aquele incômodo e aquela dúvida que só  literatura de verdade é capaz de provocar.

Binho, meu amigo, em vida, te entrego aqui essa singela homenagem.

Vida longa a você e à Suzi.

Vida longa a Azterketa.

Para adquirir o livro, envie mensagem para @saraudobinho

Em tempo

Esta semana perdemos Alzira Rufino, que foi, pra mim, uma das primeiras escritoras negras a  alcançar meus ouvidos. Que ela esteja em paz e que esse país pague a seus entes queridos todas as mulheragens que ela deveria ter recebido em vida.


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) Zero a zero: 15 poemas contra o genocídio da população negra (2015) e Horas, Minutas y Segundas (2022), entre outros. 

Nas redes: @dinhamarianilda

LEIA TAMBÉM algumas das crônicas anteriores:

Café com Meritocracia

Eu queria ser boçal ainda

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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