Na medula do verbo

Hoje, o Café com Muriçoca traz a recomendação de leitura da obra "Na medula do verbo", de Michel Yakini-Iman.
Na medula do verbo

“É manjado nos estudos de linguagem que em todo território de herança colonizada há uma dominação eficiente estabelecida pelo código do idioma. (…) Se não houvesse essa lógica, no Brasil, a gente teria como idioma oficial uma língua recheada de pretuguês (como ensina Lélia Gonzalez) e cablocage, que aparecem no nosso jeito de falá e se entendê (num é pra isso que a língua serve?).”

Hora de cessar a batalha – Michel Yakini-Iman – in: Na medula do verbo


Confesso que me falta tempo e até vontade de escrever. Primeiro porque muita gente boa tem me contemplado em suas falas, seus textos, suas manifestações e, segundo, porque, como já disse em outra era, minha saúde mental é fraca! é fraca!

Vou repetir apenas três pequenas coisas, antes de fazer a indicação do livro de hoje – e manter a promessa de trazer a vocês literatura marginal-periférica e negra. Assim vocês não vão poder mais dizer por aí que desconhecem.

Primeiro: o Bozo foi demitido, mas deixou vários ninhos de cobras, inclusive um aqui no Estado de São Paulo. Segundo, uma grande referência negra faleceu essa semana, a repórter Gloria Maria fez sua passagem, mas deixou um legado de alegria, resistência e empoderamento para o povo negro brasileiro. Por último, em terceiro lugar, meu amigo MC Di continua preso, sem ter cometido nenhum crime e tendo sido reconhecido de forma ilegal, via rede sociais. Essa treta eu vou repetir até que ele esteja livre. Daí substituo o nome dele pelo dos outros meninos que também estão sequestrados pelo Estado terrorista.

O livro de hoje é do querido Michel Yakini-Iman, escritor que já colaborou aqui nesta coluna com “A cabeça sagrada de Zumbi”. Michel me procurou durante a pandemia, propondo que eu fizesse uma leitura crítica e propusesse uma organização para seu último livro, “Na medula do verbo”. Eu topei, li e me perdi, ora na doçura de sua prosa poética, ora na dureza da nossa existência negra e periférica. 

Michel Yakini-Iman Na medula do verbo.
Michel Yakini-Iman

Na medula do verbo é dividido em três partes: “Diário de Havana”, onde se pode conhecer mais profundamente o autor e suas relações com o mundo à sua volta. Essa parte contém também literatura de viagem, um olhar brasileiro em Cuba, na Argentina, ou no Egito – lugares em que Michel esteve e recolheu memórias que se tornaram crônicas.

A segunda parte, chamada  A semente encantada de Aruanda, não é mais centrada no eu, mas sim na alteridade, na relação do mundo com o escritor. É sobre o reverberar do outro no coração do cronista, o impacto de outras vidas na vida do prosador.

Por último, temos o caderno intitulado “A terra e os olhos de sentir”, com textos mais teóricos sobre o mundão como ele é e como ele poderia ser.

Em todos os cadernos há textos desconcertantes, líricos, polêmicos, divertidos, metafísicos e metalinguísticos. É, na minha opinião, um livro completo e digno de premiações. O único problema é que é longo, mas acaba rápido demais. Quando termina, a gente ainda segue encantada com a voz de Michel, com suas provocações e fica querendo mais. O problema do livro é que ele termina. Nada mais.

E pra vocês eu deixo um teco da obra, com a recomendação de irem atrás do livro que é lindo e vale demais a pena. Sente a lira:

“É aí, na medula do verbo, que mora o princípio e as intenções das gestações que tu me concede. Se sou silêncio, agora, pouco importa, pois tu és grito constante dentro de mim, voz presente que me aconchegas sem juízo nas contradições. Musa hermafrodita de olhar molhado, que me banha e me compõe de suor e alfazema, afina minha pele, num balé de línguas, saliva das multidões, me lambuza, me adentra e me abusa, me possui, me guarda, nesse gozo pareado e zonzo de liras livres de prazer. Senti um bom-bocado sempre que alabiei teus lábios, entre as nuvens dos teus rios, que chega dá arrepios, nessas labianas saliências e não há livro nem ciências, academia nem crença, que teorize ou peque a umidez dos nossos fios.”

Yakini-Iman, Michel. Elogio à palavra. in: Na medula do verbo. (Elo da Corrente Edições, 2021)

Entre em contato com o autor: [email protected]

Ou, clique AQUI


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) Zero a zero: 15 poemas contra o genocídio da população negra (2015) e Horas, Minutas y Segundas (2022), entre outros. 

Nas redes: @dinhamarianilda

LEIA TAMBÉM algumas das crônicas anteriores:

Café com Meritocracia

Eu queria ser boçal ainda

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS

A poeta e o monstro

A poeta e o monstro

“A poeta e o monstro” é o primeiro texto de uma série de contos de terror em que o Café com Muriçoca te desafia a descobrir o que é memória e o que é autoficção nas histórias contadas pela autora. Te convidamos também a refletir sobre o que pode ser mais assustador na vida de uma criança: monstros comedores de cérebro ou o rondar da fome, lobisomens ou maus tratos a animais, fantasmas ou abusadores infantis?

110 anos de Carolina Maria de Jesus

O Café com Muriçoca de hoje celebra os 110 anos de nascimento da grande escritora Carolina Maria de Jesus e faz a seguinte pergunta: o que vocês diriam a ela?

Quem vê corpo não vê coração. Na crônica de hoje falamos sobre desigualdade social e doença mental na classe trabalhadora.

Desigualdade social e doença mental

Quem vê corpo não vê coração.
Na crônica de hoje falamos sobre desigualdade social e doença mental. Sobre como a população pobre brasileira vem sofrendo com a fome, a má distribuição de renda e os efeitos disso tudo em nossa saúde.

Cultura não é perfumaria

Cultura não é vagabundagem

No extinto Reino de Internetlândia, então dividido em castas, gente fazedora de arte e tratadas como vagabundas, decidem entrar em greve.

Macetando e nocegando no apocalipse

Macetando e nocegando

O Café com Muriçoca de hoje volta ao extinto Reino de Internetlândia e descobre que foi macetando e nocegando que boa parte do povo, afinal, sobreviveu ao apocalipse.