Estação Vai tomar no c…

Ou: Lenda urbana: Por que alguns trens deixaram de ter condutor
Estação Vai tomar no c...
Lenda urbana: Por que alguns trens deixaram de ter condutor

Por: Dinha

Pegar o trem é arriscado
Trabalhador não tem escolha
Então enfrenta aquele trem lotado

O trem – RZO

A voz do maquinista remoía raiva. Dessas que a gente vai engolindo, engolindo e, quando vomita, vomita marimbondo. Nas redes sociais a notícia corria feito a gente, quando tromba com a polícia.  Ali, era gente rindo, gente chorando, gente tendo piripaque e lutando pra quebrar o lacre de emergência e sair com ou sem consentimento do condutor danado.

Era uma manhã comum. Norita Desastre entrou no trem apressada porque as luzes vermelhas já estavam piscando. No Terminal Jabaquara ainda era possível viajar sentada, desde que se fosse uma das primeiras a entrar. Não foi. As portas se fecharam no segundo mesmo em que ela ultrapassou o vão e colocou o segundo pé dentro do vagão.

Como quase todo mundo, Norita entrou e imediatamente se perdeu em seus próprios pensamentos. De smartphone na mão, abriu logo uma paciência que a viagem era sempre mais longa do que a partida.

O trem começou a se mover. Ágil, como de costume, chegaria rápido à Estação Conceição, onde pouquíssima gente descia. Não demorou, portanto, para se ouvir o jingle característico de aviso da próxima parada:

“Tun dun dun dun. Próxima estação: Puta que o pariu!”

Um sobressalto geral acordou o vagão. De dentro do seu torpor matinal, cada qual se perguntou se o maquinista tinha soltado um palavrão e algumas pessoas se entreolharam com a testa franzida. 

Norita, ainda desacreditada, viu quando um rapaz de terno e gravata (executivo ou porteiro de condomínio – ela saberia se manjasse de marcas) – esperou a porta abrir e nada.

Confuso, o jovem olhou pra fora e viu umas dúzias de pessoas, primeiro ansiosas e, logo depois, contrariadas, pois as portas não se abriram e o veículo deu partida sem carregar mais ninguém. O moço olhava em volta, aflito, mas o metrô prosseguia. Rápido.

Pouco antes de chegar à outra estação, o aviso sonoro que antecede a fala do condutor tocou: 

Tun dun dun dun. Próxima estação: Casa do caralho!

Desta vez todo mundo se olhou. Será que o maquinista endoidou? Um casalzinho simpático e visivelmente apaixonado se olhava tentando abafar a gargalhada. O moço da Conceição andava de um lado para o outro, resmungando alguma coisa aflita. Quando São Judas chegou e, novamente, as portas não se abriram, os celulares, que antes navegavam nas redes e aplicativos de distração, começaram a filmar e a fazer ligações. O moço da Conceição suava frio, enquanto tentava obter sinal suficiente pra ligar pro seu patrão. Do lado de fora uma pequenina multidão se formava, esperando a abertura dos vagões. Do lado de dentro, algumas pessoas já tentavam abrir as portas, chutando e batendo nos vidros.

Novamente o trem partiu, deixando confusão do lado de fora e frustração do lado de dentro.

O caso parecia bem sério, apesar de o casal apaixonado ainda estar em crise de riso.

Norita pretendia descer em Ana Rosa e baldear até chegar à Consolação. Um emprego novo esperava por ela e – se o condutor não abrisse – chegaria atrasada de cara. Ela, que perdeu o último trampo por isso. Seu joguinho de paciência continuava aberto, mas parado.

De novo o aviso sonoro: tun dun dun dun – Estação vai tomar no c…

A voz do maquinista remoía raiva. Dessas que a gente vai engolindo, engolindo e, quando vomita, vomita marimbondo. Nas redes sociais a notícia corria feito a gente, quando tromba com a polícia.  Ali, era gente rindo, gente chorando, gente tendo piripaque e lutando pra quebrar  o lacre de emergência e sair com ou sem consentimento do condutor danado.

Na plataforma da Estação Saúde, o vuco-vuco já era grande. O trem parou na frente da população indignada. A partir dali, qualquer problema na via represava gente às centenas. Um mar de celular brilhava feito vagalume, acima das cabeças dos passageiros e passageiras, gravando e transmitindo ao vivo toda a confusão.

Ainda antes de partir de novo, Norita reparou nos seguranças que começavam a pipocar na plataforma e conjeturou hipóteses sobre o que estava acontecendo com o condutor. Será que a pressão dos dias o enlouqueceu? Ela adoece todo mundo… Será que o patrão lhe deu bronca? Eles destratam todo mundo… Será que perdeu seu amor? O amor perde todo mundo…

Norita e ninguém no trem sabia o que fez com que o pobre maquinista trocasse os nomes das estações. 

Chegando na Santa Cruz, logo depois de ouvir o tundum e um “ Estação vai se foder que você não manda em mim carai nenhum” e outros xingamentos inaudíveis, as portas do metrô se abriram. Um silêncio atônito precedeu o corre-corre e os gritos de Vai curíntia! e Vai tomar no cu! de comemoração e alívio.

Norita, destarte, não desceu. Ela precisava seguir, baldear e descer na Consolação. Aliviada, retomou seu joguinho abandonado.


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros.
Nas redes: @dinhamarianilda

LEIA TAMBÉM algumas das crônicas anteriores:
Vai demorar muito?
A cabeça sagrada de Zumbi

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

4 respostas

  1. Eita, chorei de rir, depois veio uma tensao daquelas.

    Mas trabalhador nao tem escolha entao enfrenta aquele trem lotado “RZO”

  2. Tragicomédia pesadona, como ler sem rir e sem se indignar? Demais, Dinha!

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