Por J. Renato Peneluppi Jr.[1] e Olívia Bulla[2]
Pequim, 21 de fevereiro de 1972. O encontro entre Mao Tsé-Tung e Richard Nixon há exatos 50 anos restabeleceu as relações bilaterais entre a China e os Estados Unidos depois de mais de duas décadas de distanciamento. A visita oficial deu início à “semana que mudou o mundo” – frase ecoada no mundo político até os dias de hoje -, redefinindo a rota geopolítica e econômica mundial, em um contexto de Guerra Fria e com consequências no desenvolvimento chinês e global.
O histórico aperto de mãos entre o líder revolucionário chinês e o então presidente republicano não foi um fato isolado e antecede, em muito, a “Diplomacia de Ping-Pong”, ocorrida em abril de 1971, quando a equipe americana de tênis de mesa tornou-se o primeiro grupo dos EUA a pisar em solo chinês desde o fim da Guerra da Libertação, em 1949. Durante os jogos, Washington suspendeu um embargo comercial à China que durava mais de 20 anos.
Mas os fatores que levaram Nixon a Pequim vão além da questão econômica e serão apresentados a seguir. Com base em uma pesquisa mais ampla, que analisa a eficácia da China no combate à covid-19, percebeu-se que, ao operar no vácuo da decadência das democracias liberais nos últimos 50 anos, a China avança no processo de construir uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos até 2049, quando se espera alcançar o rejuvenescimento da nação chinesa.
Três Reinos
Inicialmente, é preciso considerar a triangulação geoestratégica formada no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com os EUA e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) emergindo como grandes potências mundiais. Nesse triângulo, a China rompe com Washington após a vitória dos comunistas sobre o Partido Nacionalista Chinês, Kuomintang, e aproxima-se de Moscou apenas durante a Guerra da Coreia (1950-1953).
Porém, no pensamento confucionista, que resgata a lógica dos reinados e impérios, “não pode haver dois sóis no céu, nem dois imperadores na terra” – quiçá três. Essa triangulação resulta da tensa relação entre soviéticos e chineses ainda em meados dos anos 50. Apesar do predomínio da experiência soviética e do apoio técnico-financeiro de Moscou no Primeiro Plano Quinquenal chinês (1953-1957), os partidos no poder rompem os laços diante do revisionismo de Nikita Khrushchov e após o embate com Mao no Congresso comunista de 1956.
Ao mesmo tempo, a posição de Pequim em manter sua soberania reabriu a possibilidade de diálogo com Washington. O sinal de fumaça veio no fim dos anos 60, com o conflito não declarado na fronteira entre China e URSS, mais precisamente na ilha Zhenbao (Damansky), que resultou na morte de algumas dezenas de soldados soviéticos após sete meses de batalha.
Terra da Liberdade?
O interesse estadunidense em aproximar a China do eixo ocidental se dava por fatores geopolítico e socioeconômico. Externamente, os EUA viam com receio a expansão da influência soviética no Leste Europeu e o maior poderio nuclear da URSS, enquanto se envolviam fortemente na Guerra do Vietnã. Internamente, os gastos elevados dos governos Kennedy e Eisenhower desafiavam o padrão ouro-dólar definido no Acordo de Bretton Woods (1944).
Os anos 60 nos EUA também foram marcados por convulsões sociais. O fracrasso com programas políticos em apoio aos direitos civis para negros, mulheres e homossexuais, culminando com a morte dos líderes Martin Luther King Jr. e Malcom X, somado ao aumento da desigualdade de renda, com a piora da inflação e do desemprego na segunda metade daquela década, davam a sensação de a “América” ser menos competitiva, no contexto das duas principais potências, não merecendo o bastião da liberdade diante de tais desequilíbrios.
No mesmo período, a China buscava fortalecer sua soberania já sem o amparo soviético através do desenvolvimento de uma estrutura industrial independente, a partir de ajustes nas indústrias pesada e militar para absorver o maquinário avançado nas fábricas e desenvolver indústrias de base e de bens de consumo. Esse rearranjo leva em conta a ambiciosa meta de Mao, de industrializar a China em apenas 15 anos, ante os 80 anos na Europa (1760-1840).
O Grande Salto
Porém, o fracasso do Segundo Plano Quinquenal, também conhecido como “Grande Salto Adiante” (1958-1963), devido a “30% de problemas naturais e 70% de falha humana”, conforme reconhecimento do então membro do Partido Comunista Chinês Liu Shaoqi, resultou na perda de força produtiva e no colapso das indústrias. Essa situação econômica abalou a estrutura política, levando à Grande Revolução Cultural Proletária (1966-1976).
Não se tratava, porém, de uma mudança de sistema nem das instituições. Por isso, a luta institucional-partidária ocorrida ao longo de dez anos, fomentada por uma campanha político-ideológica e com vários episódios de violência e perseguição, foi a revolução chinesa sui generis, visando reafirmar os valores marxistas e revigorar a questão subjetiva na China, preservando o socialismo e expurgando elementos capitalistas e tradicionais na sociedade.
Tanto que, no único encontro entre Nixon e Mao, o líder chinês, já com a saúde debilitada, disse: “Acredito que nosso velho amigo Chiang Kai-shek não aprovaria isso”, em referência ao generalíssimo do Partido Nacionalista Chinês, que, uma vez derrotado, manteve o domínio apenas sobre Taiwan (Formosa). A visita do então presidente dos EUA foi antecedida por missões diplomáticas secretas, ainda em 1971, do conselheiro de segurança nacional Henry Kissinger ao país asiático.
A aproximação teve início logo após o governo Nixon tomar posse, no início de 1969, quando enviou uma mensagem para a China através do ex-presidente paquistanês Yahya Khan, que entregou pessoalmente uma mensagem ao primeiro-ministro chinês Zhou Enlai para transmitir a Mao. O líder chinês concordou em iniciar um diálogo, desde que os EUA retirassem suas forças militares de Taiwan.
Weiqi
A visita de Nixon a Pequim há 50 anos estabeleceu laços mais profundos com os EUA e facilitou a cooperação com o Ocidente, com a China oferecendo a mão de obra barata necessária aos países capitalistas mais avançados em troca de transferência de tecnologia industrial. À época, os elevados custos de produção nos países asiáticos do chamado “Grupo dos Oito” (Taiwan, Hong Kong, Coreia do Sul, Singapura, Indonésia, Malásia, Tailândia e Japão) começavam a inviabilizar a migração das indústrias e do capital estrangeiro.
Era a oportunidade que a China precisava para manter-se soberana e independente política e economicamente. Sob o comando de Deng Xiaoping, o processo de Abertura e Reforma Econômica na China, a partir de 1978, percorre os caminhos abertos pela nova forma de exploração do capital para inserir o socialismo no mundo como eixo de produção do capitalismo financeiro, garantindo a fabricação de produtos, a partir das Quatro Modernizações (agricultura; indústria; ciência e tecnologia; e defesa nacional).
Trata-se de uma mudança no equilíbrio de poder, alterando o jogo de forças da geopolítica mundial em tempos de Guerra Fria. Essa estratégia se assemelha à “matar alguém com uma faca emprestada”, conforme o livro dos “36 estratagemas”, de autor e período desconhecidos. Tido como uma estratégia de “superioridade de domínio”, que remete ao uso de recursos para assediar inimigos, o estratagema número 3 afirma que quando não se tem força suficiente para se opor ao inimigo, deve-se induzir alianças e utilizar a força de aliados.
Um Outro Mundo é Possível
Passados 50 anos, percebe-se que os acontecimentos ocorridos nos anos de 1970 permitiram colocar em prática a ideia do socialismo com características chinesas, lançada por Deng em 1982. A superação da questão objetiva e subjetiva de libertação das forças produtivas transformou a China no “chão de fábrica do mundo”, com essa matriz industrial global ganhando força após a entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC), já em 2001.
Aliás, em discurso, o então presidente Bill Clinton afirma que trazer a China para o comércio internacional ligaria Pequim às economias ocidentais, enfraquecendo o Partido Comunista Chinês (PCCh) e destruindo o socialismo de mercado, com as empresas estatais enfrentando a concorrência estrangeira e sucumbindo à iniciativa privada. Porém, em nenhum momento o PCCh abandonou a perspectiva socialista nem o objetivo de construir o bem-estar e o conforto ao povo (xiaokang society/小康社会).
Tanto que no auge da pandemia, em 2020, a China cumpriu a meta de eliminação da pobreza extrema, tirando 850 milhões de pessoas da miséria em 40 anos, tornando-se uma sociedade moderadamente próspera. O país agora caminha em direção à modernização do socialismo em 2035 através de uma nova dinâmica econômica, baseada na inovação tecnológica e na sustentabilidade, visando tornar-se uma nação socalista moderna no centenário da fundação, em meados deste século.
Aos olhos do Ocidente, esses objetivos de longo prazo só terão êxito se forem construídos por um sistema capitalista liberal democrático. Fica então apenas a retórica, erguendo um muro ideológico para transvestir o sucesso do marxismo na China. Mas basta um olhar atento para perceber que não existe um único caminho político-econômico para o mundo.
[1] Advogado, doutor em Administração Pública Chinesa pela Huazhong University of Science and Technology (HUST), diretor-executivo na China University Summer Schools Association (CUSSA), associado ao think tank não-governamental Center for China and Globalization (CCG) e integrante do coletivo Camélias do Leblon.
[2] Jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Economia e Mercado Financeiro, integrante do coletivo Camélias do Leblon.
Uma resposta
Mas esse desenvolvimento ainda está a custa de novas escravidão de outras etnias (pelo menos os yugures) e de chineses, além de ter dominado territórios que pertenciam a tibetanos, mongóis e os yugures.
Que possam escrever artigo sobre isso