32º Festivale: entre a política e cultura

 As vozes que narram uma semana de festividade no Vale do Jequitinhonha. Pequenas reflexões sobre a cidade, os shows, a arte e os questionamentos acerca das barragens e das políticas públicas

Após 21 anos, o Festivale, Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha, retorna a cidade de Salto da Divisa com a missão de aliar a tradicionalidade da festa com a política e a renovação que a juventude precisa. A 32ª edição do evento emocionou os participantes com muito teatro, poesia, dança, aprendizagem e esperança, já que mostrou abertura do poder público para as demandas da região e vontade dos jovens em engajar-se nas lutas locais.

Com o início do Festivale, muitos dos jovens que saíram do Vale em direção aos grandes centros, retornaram para curtir a festividade. É o caso de Ulisses de Oliveira, de 26 anos. Natural de Salto da Divisa, ele reside em Belo Horizonte para estudar e afirma que a cidade, que já está quase em território baiano, embaraça as duas culturas. “Creio que a identidade do Salto, como muitas, é bastante complexa, mas vejo que ela se aproximaria a uma ideia de um povo de fronteira, que fica nos limites da construção identitária do povo mineiro e do povo do Vale do Jequitinhonha com a ideia de cultura baiana. É um lugar que neutralizaria essas identidades, onde não dá para descrever que aqui é Bahia ou ali é Minas”.

Benção das Águas. Foto: Vilmar Oliveira.
Os jovens da região, repletos de sonhos, se dividem no dilema de amar a cidade e querer recursos que ela não possui. “Minha cidade ia ser muito desenvolvida se tivesse estrada de asfalto, a gente já teve verba pra isso mas não foi feito. O clima é bom e é pertinho de Porto Seguro.. às vezes eu fico pensando, será que aqui é o único lugar que ainda não tem asfalto?”, questiona Ulisses. Larissa Neves, 14 anos, que está no seu primeiro Festivale e faz parte dos Jovens Comunicadores de Salto da Divisa exalta a cidade, ainda que afirme que pretende se mudar de lá para estudar. “Morar em Salto da Divisa é bom porque é uma cidade pequena e é tudo pertinho, é uma cidade de várias culturas. Morar perto da Bahia é um prazer imenso, as coisas ficam mais perto, se aqui não tiver um recurso, um hospital, vamos para a divisa com a Bahia.”

Cada cidade tem seu teatro, grupo de dança e a riqueza da cultura de um povo que quebra o estigma de “Vale da Miséria” e renasce das próprias contradições. Weslley Barbosa, de 16 anos, morador da cidade de Rubim mostra esta garra. “Foi a própria ONU que veio ao Vale e colocou o apelido de Vale da Miséria pra cá, e isso ficou impregnado até hoje na região. Aqui não é mais aquela coisa de que há anos atrás você via as pessoas com só feijão na panela.” Ainda que, para ele, várias mudanças sejam necessárias, o participante do Folias da Cultura, Ponto de Cultura de Rubim, reforça o poder da juventude. “A gente só vai estar bem representado quando nós mesmos tomarmos as atitudes, irmos pra rua e a massa cada vez mais aumentar. Eu consigo olhar e ver que não estou sozinho e tenho mais pessoas engajadas lutando aqui no Vale.”

Teatro Ícaros do Vale. Araçuaí. Foto: Vilmar Oliveira

A imersão na região deixou clara a ligação do povo com o Rio Jequitinhonha, que era e ainda é força motriz destas terras no nordeste de Minas Gerais. Segundo Ulisses, “o rio é evidentemente um verdadeiro elemento que compôs a formação e ocupação da cidade, ali era caminho para vários grupos humanos, desde os indígenas, escravos que fugiam, dos contrabandistas de diamante, dos estudiosos da coroa portuguesa, do oficiais da coroa.”

Entre um show e outro, narrativas a respeito das barragens submergiam, as manifestações das lavadeiras e de outros movimentos da cidade eram fortes. Pensativo, Ulisses faz questionamentos difíceis de serem respondidos. “Hoje ao ver o rio, ver aquele gramado de futebol de extensão tão grande próximo à sua margem, vejo que o rio morre junto com os peixes e fico triste de pensar que não tem mais retorno. Será que não mesmo?”

Ato das Lavadeiras. Foto: Agatha Azevedo

Publicizar as questões referentes ao Vale do Jequitinhonha também foi tema forte durante os debates do Festivale. A Rede Minas e a Rádio Inconfidência se fizeram presentes na tentativa de firmar o compromisso de interiorizar suas mídias. Israel do Vale, presidente da Rede Minas, afirma que a missão de sua gestão é “estar presente onde a TV comercial não estar, levar as pessoas a não só enxergar umas as outras, mas tomar posse deste espaço” , neste sentido, ele reforça: “”Política pública se faz com as pessoas e não para as pessoas, a gente quer fazer junto!”.

Teatro Meninos do Vale. Medina. Foto: Vilmar Oliveira

Elias Santos, diretor artístico da Rádio Inconfidência utilizou de sua fala para provocar uma reflexão sobre a região: “O que um debate de TV pública interessa ao Vale do Jequitinhonha? Interessa! As coisas estão mudando e se a gente não ficar atento seremos atropelados!”. A ideia é trazer as pautas para o alcance de todos, e a pergunta de Elias que ficou na mente dos comunicadores locais foi: “De que adianta democratizar os meios, se as pautas e os conteúdos não estão democratizados?”

De encontro ao debate de mídia, a Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural Ivana Bentes afirmou que “a cultura é produzida por todos nós”, e falou da força política de aliar cultura e comunicação para tornar rentáveis os movimentos na região. Lia Queiroz, Diretora Executiva Adjunta da Fecaje, também entrou no debate. “Hoje nos temos no vale uma gama de rádios livres e eu fico me perguntando: O que vamos fazer com este povo? Eles não são importantes para a cultura?”

Povo este que é de luta. A massa de moradores do Vale demonstrou sua força com as faixas que questionavam as barragens da região, que destruíram o estilo de vida de muitas pessoas. Levar recursos de forma digna, promover o acesso das pessoas aos seus direitos, dentre outras questões também foram pauta. Aline Ruas, do MAB — Movimento dos Atingidos por Barragens, trouxe questões que reforçam os problemas que o desenvolvimento forçoso das barragens trazem. “Nós queremos um desenvolvimento para sustentar as empresas ou o povo do Vale do Jequitinhonha? Se for um desenvolvimento com o nome de sustentável, mas que não sirva para sustentar o povo do Vale do Jequitinhonha, não serve pra nós!”.

Intercalando o orgulho pela terra e o grito por mais direitos, os participantes do 32º Festivale finalizam o diálogo entre política e cultura deixando claro que o festival se manterá sendo uma forma resistência da região, que batalha todo ano para fazê-lo acontecer. Afinal, o que há de mais político do que a resistência de se fazer um festival de cultura popular no Vale do Jequitinhonha?

Grupo Só Riso. Jequitinhonha. Foto: Vilmar Oliveira

“O Vale não é o vale da pobreza, o vale da miséria, eu já digo, o vale é o mais rico que eu conheço, rico em cultura. Miséria pra mim é quem não tem nada e nós temos uma cultura tão rica e tão grande pra oferecer. Quem vem, sabe!” — Weslley Barbosa, 16, Rubim. Folias da Cultura, Ponto de Cultura.

A cultura se renova pouco a pouco, e a tradição já consegue dividir espaço com a juventude, que traz a cultura do rap, as pautas LGBT, dentre outras demandas para o próximo Festivale. O que se espera é que as discussões e os shows continuem fazendo deste encontro entre Alto, Baixo e Médio Jequitinhonha, uma festa que englobe “ Vale, Vida, Verde, Verso e Viola.”

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