Desde o começo do mandato, em 2021, a vereadora Edna Sampaio (PT), tem resistido a inúmeros torpedos disparados por bolsonarista s da Câmara Municipal de Cuiabá. Primeira mulher negra eleita na capital, única petista entre 25 parlamentares, ela os enfrenta no plenário sempre que destilam ódio, racismo, misoginia, homofobia e preconceito contra o povo. Edna viu os ataques crescerem quando pediu o afastamento e, em seguida, a cassação do vereador Marcos Paccola, do Republicanos. Tenente coronel da PM do Mato Grosso, Paccola é réu por homicídio qualificado e teve o porte de arma suspenso pela Justiça por cometer o crime em 1º de julho passado. Mesmo assim, sua candidatura a deputado estadual foi homologada na convenção do partido este mês.
Edna conta que, atônita, viu reportagens que mostravam a frieza de Paccola ao atirar em um homem, pelas costas. O episódio: Câmeras de segurança de uma loja de conveniência registraram Alexandre Miyagawa, agente socioeducativo, deixando o local com a namorada e se dirigindo ao carro dela, em aparente desentendimento. O vereador surgiu, viu a cena e disparou três vezes no servidor público, que morreu por hemorragia.
Com trajetória na promoção dos direitos humanos, Edna acredita ter caído numa armadilha ao dar uma longa entrevista para RepórterMT/Conexão Poder (publicação do Grupo André Michells no YouTube). Entre outros temas, falou das causas da violência e da severidade maior do sistema contra os pobres, que lotam as cadeias brasileiras. O conteúdo viralizou sob uma manchete associando a vereadora à defesa de bandidos. A edição mobilizou a tropa de choque da base governista, capitaneada pelas deputadas federais, Bia Kicis (PL-DF) e Carla Zambelli (PL-SP), seguidas pelo empresário Luciano Hang, o conhecido Véio da Havan. Nas redes sociais, eles abriram fogo contra a petista, que é candidata a deputada estadual e recebeu pesadas ameaças e xingamentos – algo que tem se repetido no Brasil com vereadoras pretas, trans e de esquerda.
Jornalistas Livres – Como reagiu ao resultado daquela entrevista, vereadora?
Edna Sampaio – No início, vivi um misto de sentimentos. Fiquei indignada, com raiva, triste, me vi traída e desrespeitada. Convidada, fui de peito aberto, disposta a responder sobre temas polêmicos, que muitos se recusam a falar, e que são caros para mim. Uma das pautas era a violência – estou pedindo a cassação de um vereador por assassinato. A conversa enveredou para a situação carcerária. Enfatizei a diferença de tratamento dado a pobres e pretos pela polícia e pelo Judiciário. Afinal, Paccola continua dando expediente na Câmara como se não tivesse tirado a vida de um homem. O Brasil tem a maior população carcerária do mundo, e 80% dos presos são pobres e pretos. Muitos foram para a cadeia por roubar alguma coisa para comer.
A repórter passou a levar para outro lado, como se eu estivesse defendendo o crime, incentivando a invasão e o rouba de residências. Tomei um susto quando vi a manchete, que fazia crer que eu incentivava o crime. Pedi para alterarem o título, porque não representava a minha fala. Não defendo delito algum. Eles mudaram duas vezes, mas não resolveu: o primeiro já tinha virilizado. Vi que o clima não era bom desde a minha chegada ao estúdio. Meu assessor estava de máscara e a equipe pediu para ele tirar, como se adotar proteção significasse uma afronta. Foi um constrangimento. Mas nunca imaginei que seriam capazes de distorcer a minha fala.
Jornalistas Livres – Você acredita que a forma como foi tratada se deu em função dos pedidos de afastamento e cassação do vereador Paccola?
Edna Sampaio – Acho que sim. Fui a única a apresentar um pedido de afastamento para que ele se defendesse, na polícia e na Justiça, sem arrastar a Câmara Municipal para o debate sobre o crime que cometeu. Ele atirou pelas costas. Não deu oportunidade de defesa àquele homem. Foi muito grave!
Jornalistas Livres – O veículo publicou um editorial avisando que não mais mencionará seu nome porque você só quer aparecer e enganar gente desavisada com sua narrativa porca. Isto te abalou?
Edna Sampaio – Não. É preciso ter coragem para viver e reagir neste país. O editorial foi publicado depois que gravei um vídeo e postei nas redes para me explicar, reagir àquela manchete mentirosa. O fato deste veículo achar que era plausível associar minha imagem ao crime, prova o tipo de racismo existente no Brasil. Não é nada cordial querer nos intimidar, nos tirar a força, jogar para fora do poder. Acho ótimo que nunca mais falem no meu nome porque tenho certeza de que não quero mais voltar lá, onde credibilidade e ética passam longe. Uma coisa é o jornalista ter posicionamento de direita. Posso debater com ele. Outra coisa é uma organização que se coloca como site de notícia, é de extrema direita e produz fake news em cima do que você fala. Quem não respeita a opinião do outro deve ser evitado. Não se discute com fascistas.
Justiça parcial
Jornalistas Livres – Pretende processá-los?
Edna Sampaio — Não penso, por enquanto, em processo. Às vezes, procurar a Justiça é arriscado: alguns juízes fortalecem a violência contra nós, legitimando este tipo de conduta, reforçando que estamos do lado errado. Entrei com uma ação contra um outro vereador que foi racista comigo em plenário – e a Justiça entendeu que não havia nada de estranho na fala dele. Já fui condenada em primeira instância a pagar multa para o deputado bolsonarista Cattani (Gilberto Cattani, do PL), que publicou que ser gay é um direito tanto quanto ser homofóbico – e ele ainda pediu a minha cassação.
Jornalistas Livres – Entre seus colegas, alguém acompanhou seu posicionamento sobre o vereador que que virou réu?
Edna Sampaio – O presidente da Casa reuniu os vereadores para discutir o que fazer. Eles queriam que a Câmara não se pronunciasse, que ficasse quieta até o Judiciário tomar uma decisão. Fui a única divergente. Paccola estava presente. Houve reação de indignação com minha fala, como se eu quebrasse um pacto corporativo.
A situação vem ficando ruim de desde abril. Lula havia dito que os sindicalistas deveriam procurar os deputados da sua região para que votassem um determinado projeto de acordo com os interesses dos trabalhadores. Paccola declarou naquela época que o “Lula ladrão” insuflava os sindicalistas a invadirem a casa dos parlamentares. E que, se acontecesse com ele, responderia aos petistas com as 500 munições que Bolsonaro havia liberado para os CACs (Caçadores Atiradores e Colecionadores). Naquele momento protocolei o primeiro pedido de cassação por quebra de decoro, mas não prosperou. Quando ele matou um homem, fiz o pedido de afastamento, que foi derrubado na Comissão de Constituição e Justiça sob a alegação de não existir previsão de casos do tipo no Regimento Interno. Já o pedido de cassação pelo assassinato tramita na Comissão de Ética, que deve apresentar uma conclusão em setembro.
Jornalistas Livres – Segundo o Ministério Público, Paccola agiu para projetar a imagem de alguém que elimina a vida de supostos malfeitores e revela destemor no combate a supostos agressores de mulheres. O MP disse ainda que, após o crime, o vereador veiculou nas mídias seu suposto ato heroico, além de discursar na Câmara exaltando o assassinato, em total desrespeito à figura da vítima. Isto ajudou a sua tese?
Edna Sampaio – Sim. Não foi apenas um crime bárbaro, um erro de interpretação da realidade na loja de conveniência. Era, e é, um projeto político de transformar a aquela cena em algo que desse projeção para ele. O vereador, seus colegas e apoiadores disseram que eu estava fazendo uso político do assassinato. Ele me chamou de urubu de carniça. A conclusão do MP mostra quem, de fato, fez uso político da trágica morte. Mesmo assim, vejo as consequências da minha posição isolada. O clima pesou. Ficou muito tenso para mim.
Jornalistas Livres – Por que tão tenso?
Edna Sampaio – A atuação da nossa Câmara é ideológica, não está focada em Cuiabá, nem em melhorar a condição das pessoas que vivem na cidade. No ano passado, tive que me colocar contra uma moção de aplauso aos policiais que praticaram, no Rio, a chacina de Jacarezinho (ocorrida em 6 de maio de 2021, com 29 moradores mortos). A maioria dos vereadores entra em disputa comigo para marcar posição, promover o que pensam sobre segurança pública e defender o armamento da população. O bolsonarismo está fortemente presente.
Crime para uma ideologia
Jornalistas Livres – Você enxerga na atuação de Paccola uma forma de marcar esta posição?
Edna Sampaio – Não tive dúvidas quando vi as imagens, da sua chegada até o momento de atirar no servidor. Ficou evidente que se tratava de um script anunciado. Compatível com uma visão equivocada de segurança pública e do papel do policial. Ele não consegue se desvincular da figura do policial que foi nem entender a função de um vereador. Mostrou ainda uma visão equivocada de defesa, de agir para poupar alguém e do que seja portar uma arma. O episódio revela que não se trata mais de uma ideia, mas de colocar em prática a ideia de eliminação, mesmo sabendo que poderia estar sendo filmado. O episódio me assustou também porque estou sempre me opondo a ele na Câmara, embora mantivéssemos uma relação civilizada. Hoje tenho dificuldade de me aproximar do vereador. Vi a coragem que ele tem para matar.
Jornalistas Livres – Você teme por sua vida?
Edna Sampaio – Sim, temo pela minha vida e a da minha família (casada, ela tem três filhos e pais idosos). Vivo em um estado conservador, de coronéis, onde ocorre todo tipo de violência, incluindo a política. Depois da entrevista, recebi mensagens nas redes desejando que minha casa fosse assaltada, que eu tivesse uma arma apontada para a minha cabeça, que meus filhos fossem estuprados. Não sei se Marielle Franco recebeu avisos antes de ser assassinada. Para matar alguém não precisa aviso. Mas para ter receio, basta que as mensagens te incomodem. Vejo o nível da virulência e da disposição que eles têm para exterminar os contrários.
As instituições precisam reagir, entender que este é um problema real. As ameaças ocorrem com grande frequência contra quem disputa espaço político e se opõe a Bolsonaro para reconstruir o país.
Tropa de choque
Jornalistas Livres – O que achou da rapidez das deputadas federais Bia Kicis e Carla Zambelli em usar as redes delas para atacar você? O empresário Luciano Hang, amigo de Bolsonaro, também fez posts na mesma linha.
Edna Sampaio – Não sigo o empresário nem as deputadas nas redes. Há um outro colega vereador que age de forma semelhante, conclamando a extrema direita para me atacar. Eles não são apenas pessoas que se escondem atrás de perfis falsos na internet: têm mandatos e a imprensa nas mãos. Sei que os incomodo. Estou empenhando toda minha força e disposição na luta pela eleição do presidente Lula no primeiro turno, para que cesse a violência política que toma conta do país.
A postagens destes ícones do bolsonarismo fizeram com que pessoas do Brasil inteiro viessem às minhas redes desejar a minha morte. Tenho bom equilíbrio emocional, apesar de não ficar imune a tudo isto. Mas não me destroem nem me fazem retroceder. Pelo contrário. Se eles estão falando de mim, desta maneira, significa que o Mato Grosso passa a saber que aqui tem uma candidata anti bolsonarista e o nome dela é Edna Sampaio.
Jornalistas Livres – Como foi sua chegada à Câmara?
Edna Sampaio – Estranharam ver aqui uma mulher preta, que não é só preta, mas traz o combate ao racismo como pauta central. Diziam que os projetos que eu apresentava não tinham qualidade técnica. Sou doutora em ciências sociais, mestre em ciência política, coordenei por 10 anos a área de planejamento do governo do Estado, como gestora governamental concursada. Por que não estaria preparada? Fui impedida de presidir a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, mesmo sendo fundadora do Centro de Referências em Direitos Humanos na universidade onde trabalho (Universidade do Estado de Mato Grosso). A alegação dos vereadores foi que na presidência eu desvirtuaria o conceito de família e coisas assim. Não posso dizer que o comportamento discriminatório e violento seja homogêneo. Alguns colegas são mais viscerais.
Jornalistas Livres – Como viu as ameaças de morte e os atentados a tiro sofridos por muitas vereadoras de esquerda, negras ou trans? Da lista, fazem parte Erika Hilton (PSOL-São Paulo), Benny Briolly (PSOL-Niterói), Daiana Santos (PCdoB-Porto Alegre) e Duda Salabert (PDT-Belo Horizonte)?
Edna Sampaio – Eu me solidarizo com todas elas. Mulheres negras e trans deram um pequeno passo para ocupar vagas no parlamento, o que era extremamente raro. A violência de gênero cresceu porque, sobretudo as mulheres pretas, estão chegando ao poder e isto é bom para os pretos. Podemos neutralizar a estrutura mais perversa e naturalizada no país, que é a nossa exclusão. A intolerância se voltou não apenas contra as mulheres mas também contra Renato Freitas (vereador petista cassado em Curitiba). Estamos quebrando uma perversa estrutura racial historicamente consolidada. E não vamos parar.