Uma ocupação, duas Carolinas, muitas histórias

Ocupação do MTST, nascida em meio a pandemia, já conta com mais de duas mil famílias buscando abrigo do descaso do poder público.
Entrada da ocupação. Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres

“Quando estou na cidade, tenho a impressão que estou na sala de visita, com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludo, almofadas de cetim. E quando estou na favela, tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo” foi assim que Carolina Maria de Jesus definiu a segregação espacial nos anos cinquenta, quando a urbanização começava a dar forma às grandes cidades brasileiras e a consolidar no espaço a desigualdade. Mais de sessenta anos depois, outra Carolina Maria de Jesus nasce para combater esse projeto de segregação. Mas essa nova Carolina, não é uma pessoa, como a grande escritora de “Quarto de despejo”, mas um conjunto de Marias, Carolinas, Jesus, Marilzas, Gilvanias, Reinaldos e muitas e muitos outros. Essa nova Carolina é uma ocupação do MTST. Nascida na madrugada de quatorze de maio deste segundo ano pandêmico de 2021. É filha da antiga necessidade do povo brasileiro de lutar pela casa própria e da desigualdade estrutural e pandêmica.


“A realidade da Carolina, nos anos cinquenta, não é muito diferente da nossa, agora em 2021. As histórias das ocupações são muito parecidas. A gente é jogado no quarto de despejo. Quando ela fala do quarto de despejo, ela fala da cidade de São Paulo, comparada a uma grande mansão e os favelados jogados no quarto de despejo, no caso: as periferias, descartados, onde a gente se torna invisível ao poder público” explica Gilvania, uma das duas mulheres que lideram a ocupação.

Foto da ocupação. Foto: MTST.


Situada no extremo leste de São Paulo, na Avenida Bento Guelfi, Jardim da Laranjeira, ela hoje abriga mais de duas mil famílias, que montam seus barracos. No domingo, 23, quando os Jornalistas Livres estiveram na ocupação, o movimento era intenso. Com uma semana de ocupação, o trabalho de base que já era feito na região trouxe a simpatia de pessoas próximas que, apertadas de um lado pela pandemia e de outro pelo preço dos aluguéis, viram na ocupação uma possibilidade de, algum dia, ter a casa própria.

Criança brinca na ocupação. Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres

O movimento, que já viu a escalada da violência policial contra os sem-teto chegar ao ápice na reintegração do Pinheirinho em 2012, tem experiência para dar luz a uma nova ocupação. Mas teve que paralisar o trabalho de base por conta da pandemia.

E o corredor que separa a sala de visita e o quarto de despejo se alargou. Em meio à crise do coronavírus o Brasil vê o desemprego roubar a chance de trabalho digno de mais de quatorze milhões de pessoas e a fome, personagem fantasmagórico que assombrou Carolina há tantos anos, voltar a aterrorizar o país. E a combinação letal da doença com o projeto de morte do presidente, que ignorou vacinas e criou aglomerações, roubou mais de 450 mil vidas e segue ameaçando a todos.

Assim, a necessidade falou mais alto.

É assim que o casal Reinaldo e Diaconilza Teixeira conta sua parte na ocupação “Eu tô na ocupação porque pago aluguel e quero sair [da dependência do aluguel]. Estamos lutando por esta terra aqui. Cheguei aqui na segunda-feira, fiz meu barraquinho aqui e estou pedindo para Deus para sair do aluguel” explica Reinaldo. Diaconilza completa “A gente precisa de uma moradia, e [o aluguel] fica difícil”.


“Ocupamos com seiscentas famílias, que já participavam do trabalho de base desde 2019. Que tinha sido interrompido por conta da pandemia. Esperamos sair da fase roxa [do plano de controle epidemiológico do Estado de São Paulo] e retomamos as reuniões com essas famílias, que entenderam a gravidade da Covid-19, com muita gente indo morar na rua, passando fome e revirando lixo. Era necessário vir aqui junto com a gente ocupar este espaço. A pandemia só veio agravar o déficit habitacional em São Paulo, que é de mais de um milhão de moradias. As pessoas estão com dificuldade de pagar o aluguel. Tem gente pedindo para vir morar, porque estão devendo dois, três meses de aluguel. Estão vindo morar aqui mães solo, mulheres com três ou quatro filhos, que não aguentam pagar o aluguel. E o governo fala ‘fica em casa’, mas muitos não tem mais casa ou não conseguem mais pagar o aluguel. Por isso é importante ter um espaço como esse para acolher essas pessoas. A gente quer ser um espaço de acolhimento e de luta para cobrar do poder público um direito constitucional” conta Claudia, a outra liderança da ocupação.

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OCUPAÇÃO DE MULHERES


O MTST tem como sua força motriz muitas lideranças mulheres que comandam as ocupações. Gilvania Reis Gonçalves e Claudia Garcez são as duas lideranças que coordenam a Carolina Maria de Jesus. Elas compõem, junto de outras companheiras, uma geração de coordenadoras que o movimento tem criado. Não por acaso o MTST lançou ano passado pelo PSOL, para as eleições municipais, uma chapa coletiva de três lideranças da zona sul, leste e norte para a câmara de São Paulo.


Como são maioria nas ocupações, tentando fugir do abuso imobiliário, violências domésticas, falta de apoio com os filhos, elas também são a força que sustenta a organização do movimento.

É sob o comando delas que as rodas de discussão, que põem na pauta interna do movimento todas as violências que sofrem e as forças que têm, que essas ocupações têm sido espaços de acolhimento.

Gilvania Reis Gonçalves e Claudia Garcez, lideranças da ocupação. Foto: Lucas Martins / jornalistas Livres


“Aqui tem espaço para construir seu barraquinho, começar sua luta. Tem a cozinha coletiva, que aceita doação das pessoas, e a gente têm tido muita ajuda, para poder alimentar essas famílias. A gente está servindo em torno de quatrocentas alimentações aqui, no almoço, quatrocentas na janta, cafezinho de manhã cedo. A gente não cobra nada, só a participação na luta. Sem essa unidade não conseguimos arrancar do poder público o direto à habitação. São eles os responsáveis por prover habitação, acesso a essa moradia” explica Claudia.

reunião dentro da ocupação, no domingo (23). Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres


Gilvania saiu da Bahia ainda adolescente e veio para São Paulo “com um sonho; achando que era mil maravilhas”. Mãe de cinco filhos (“casei e me separei; sofri violência doméstica e criei meus filhos sozinha”). O genocídio das forças policiais matou um dos seus filhos em 2017. Uma história que estava contada nas mãos de Carolina Maria de Jesus, mesmo antes do nascimento de Gilvania. A história da mulher brasileira. A história de uma mãe sem teto. Ela conta que conheceu o MTST em 2015, na ocupação Dandara, também na zona leste. Em busca de “um sonho que era muito distante. Com o salário que eu ganhava, era impossível comprar uma casa”.

Gilvania Reis Gonçalves. Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres


Um ano depois ela aprendeu que a esperança não era mentira: 216 famílias que permaneceram na ocupação conseguiram um projeto na COHAB (Companhia Metropolitana de Habitação). Hoje ela já tem a chave de sua casa. Mas segue ensinando outros a conseguirem suas chaves. “A formação política que a gente recebe, de classe, de cor, de raça. Eu costumo dizer que o MTST é uma faculdade. Eu, que não consegui estudar, que fiz só até a sétima série, aprendo com esse universo do MTST. É mais do que uma faculdade. A gente está vivendo a dura realidade, na vivência mesmo”.


Depois de perder o emprego em 2019, passou a vender tapioca. Tinha como principal ponto de venda o metrô Carrão, mas a pandemia tirou sua renda. Tentou evitar sua circulação durante a pandemia, mas depois de três meses, mesmo com o auxílio, não teve como. Voltou a tentar fazer algumas vendas, mas “o povo não estava saindo de casa e quem estava não tinha dinheiro para gastar”.


A agente comunitária de saúde Marilza, 61, veio da ocupação Anastácia, também na zona leste, ajudar a Carolina Maria de Jesus. Ela explica como a formação de quadros de coordenação não é só uma questão de organização, mas uma forma de mudar .“Agora eu já sou militante. Agora, como eu já fui ajudada, estou ajudando as outras pessoas também. Essa é a terceira ocupação que estou ajudando. Já participei da [ocupação] de São Bernardo e de Guarulhos. Hoje eu sinto orgulho. As meninas de lá já estão ajudando aqui também. Daqui vai sair mais coordenação, mais pessoas para ajudar. Tem que ser guerreira, para ter coragem de enfrentar, na chuva, no sol, ir nos atos e passar essa esperança para as outras. Pode ver, nas ocupações têm mais mulheres que se identificam. A vida que elas vivem, sofridas, pagando aluguel, morando em fundo de quintal, sogra, sogro [risos]. Aqui é a única oportunidade de ter uma casa. O MTST dá essa oportunidade e dá esperança. Esse povo que está aqui agora tem esperança. É o que eles não tinham – nem condições nem esperança”.

Marilza, guia da nossa visita, posa (sem máscara por conta da foto) na Avenida Brasil. Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres


O terreno

Entre a rodovia Mario Covas e o Parque do Carmo, o terreno irregular vê crescer os barracos. Sem cumprir sua função social, estava esperando a região valorizar para que gerasse uma boa venda. Assim entrou no radar do movimento.
A entrada da ocupação, que tem um pequeno morro, já logo avisa: por favor use máscara. Uma grande árvore é o marco da via principal, a “Avenida Brasil”, que se estende até o final do terreno. É a partir da Avenida Brasil que se organiza a lógica espacial da ocupação.

Ao longo da avenida estão os barracos, em estrutura são muito menores do que os casarões da outra avenida Brasil, no Jardim Europa, distante quase 30 km dali. Mas em dignidade, são superiores. A maior parte dos barracos é feita de madeirite e lona. As bases são cavadas e os madeirites fincados.

As camadas de lona são colocadas em torno da estrutura. Está posta a proteção contra as intempéries. As dimensões são de dois por dois ou três por três metros. Os bairros são os Grupos. Cada Grupo tem uma pequena cozinha comunitária, além da cozinha principal, que já está montada preparando as refeições. É possível saber em que Grupo se encontra facilmente, a maior parte dos barracos tem um grande “G” pintado e mais um número para identificar cada barraco.

Ocupante prepara o terreno para montar seu barraco. Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres


Ao lado da cozinha principal está o palco, onde as assembleias e as rodas de discussão e debate são realizadas. Não é sem motivo que estão colocadas lado a lado o fogão, que alimenta os corpos da ocupação, e o centro de debates, que alimenta as mentes. As coordenadoras sabem, por experiência própria, o que é preciso para manter a ocupação. A ocupação não diz em páginas o que Carolina Maria de Jesus contou com sua escrita, mas conta e reverbera sua mesma denúncia por meio do espaço. Tenta colocar uma inversão, e fazer do quarto de despejo um teto de esperança.

Reportagem de Eduardo Tkacz e Lucas Martins. Fotos de Lucas Martins. Capitação de Eduardo Tkacz e Lucas Martins. Edição de Eduardo Tkacz.

COMENTÁRIOS

4 respostas

  1. Bom dia,
    faltou falar que o proprietário não paga os impostos desde 2006, uma dívida de quase 3 milhões e o terreno foi considerado abandonado em 2015 e que o proprietário não ganhou um pedido de reintegração acho que do ano de 2019.

  2. Parabéns pela reportagem, parabéns aos militantes e apoiadores.

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