Sobre as relações entre os movimentos sociais de esquerda e as universidades públicas

A universidade deve, sim, dialogar com a sociedade civil organizada, mas não pode ser cooptada por grupos específicos

Por RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de História na Universidade Federal da Bahia

            Em 14/9, publiquei o artigo “Professores universitários odiados à direita e à esquerda” na Folha de São Paulo (https://www1.folha.uol.com.br/amp/opiniao/2024/09/professores-universitarios-odiados-a-direita-e-a-esquerda.shtml). Apresentei quatro casos de professores que foram vítimas de agressões por parte de movimentos sociais de esquerda. Meu argumento: não é apenas a extrema direita que persegue os professores nas universidades públicas e a violência perpetrada por movimentos sociais de esquerda é ainda mais difícil de ser combatida, pois conta com a leniência de parte da comunidade universitária.

            Muitos colegas concordaram e a publicação chamou atenção para a necessidade de criação de um Observatório Nacional com o objetivo de monitorar relatos de todo tipo de violência laboral contra professores universitários. A iniciativa seria fundamental para catalogar dados e mediar o acesso às redes de proteção sindical, psicológica e jurídica.

            Como sempre acontece, também vieram as críticas, o que é muito bom para o debate.

            Em 20/9, Carlos Zacarias e Maíra Kubik publicaram o artigo “Quem tem medo dos movimentos sociais?” no portal “A Terra é Redonda” (https://aterraeredonda.com.br/quem-tem-medo-dos-movimentos-sociais/), dialogando diretamente com a minha reflexão. No dia 3 de outubro, Fábio Frizzo, Marco Pestana e Paulo Pachá publicaram na Folha de São Paulo o texto “Quem são os inimigos da universidade brasileira?” (https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/10/quem-sao-os-inimigos-da-universidade-brasileira.shtml), onde confrontam meus argumentos, ainda que não citem meu nome, em um gesto de apagamento de autoria.

            Logo na chamada do artigo, Carlos Zacarias e Maíra Kubik escrevem: “quando mulheres, negras e negros, pessoas LGBTs e Pessoas com Deficiência acusam alguém, é improvável que o façam sem critério”. Os autores partem da premissa de que essas pessoas seriam dotadas de uma virtude essencial que potencialmente as impediria de mentir, ou de se equivocar. A formulação traduz um dos principais aspectos daquilo que no debate público costuma ser chamado de “identitarismo”, e que pode ser definido como a expressão política de identidades ontologizadas.

            Depois de dizerem que não entrariam no mérito dos casos que apresentei, Carlos Zacarias e Maira Kubik afirmaram que “são raros os casos de cancelamentos de professores e professoras que não ajam cotidianamente de forma opressiva e intimidadora, de modo que muito dificilmente vemos docentes que não sejam reincidentes serem alvos dos movimentos sociais”. Não há dados disponíveis que permita chegar a essa conclusão e, por isso, é urgente a criação do Observatório Nacional Docente. Além disso, ao utilizar esses termos, meus colegas demonstram pouca empatia pelos quatro professores citados, nenhum deles reincidente em denúncias de opressão ou intimidação. Há, ainda, algo mais grave no argumento: a pressuposição de que em casos de reincidência os tribunais do cancelamento seriam legítimos, com militantes colocando-se na posição de acusadores, julgadores e executores.

            Já Fábio Frizzo, Marcos Pestana e Paulo Pachá acreditam que os ataques direcionados às universidades públicas partem exclusivamente da extrema direita. Os colegas sequer cogitam a possibilidade de que movimentos sociais de esquerda também sejam capazes de se equivocar na metodologia de atuação. Novamente, observamos a pressuposição de uma virtude ontológica derivada de uma condição de existência atravessada por experiências de opressão. Sobre os casos concretos que mencionei, os autores dizem que “são poucos” e “desproporcionais”. Também lhes faltam dados e definir crime de agressão contra servidores públicos com o termo “desproporcional” me parece ser de um eufemismo desrespeitoso com os colegas afetados.

            Para além de afirmações problemáticas, os dois textos confirmam meu argumento inicial. Na medida em que agenciam as justas causas dos direitos das minorias sociais, as ilegalidades cometidas por movimentos sociais de esquerda apresentam desafios específicos para as autoridades universitárias e sindicais. Diferente é o caso das agressões promovidas pela extrema direita, que geralmente vêm de fora da universidade e provocam sentimento de coesão na comunidade acadêmica, o que colabora para a eficácia das respostas.

            A universidade deve, sim, dialogar com a sociedade civil organizada, mas não pode ser cooptada por grupos específicos. A relação entre a universidade e os movimentos sociais de esquerda não deveria ser de alinhamento incondicional. Sem autonomia, a universidade não cumprirá sua função e as mudanças tão desejadas nada mais farão do que substituir um discurso único por outro. Não existe autoritarismo do bem.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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