Sandman: Os Perpétuos contra o racismo

Adaptação para a Netflix dos quadrinhos Sandman de Neil Gaiman sofre ataques de natureza racista e misóginos por parte de fãs menos dedicados em entender o verdadeiro significado da obra.

RACISTAS NÃO ENTENDEM QUADRINHOS.

Uma turba enfurecida de fãs da obra Sandman, do quadrinista e escritor inglês de Neil Gaiman, criado para o selo Vertigo da DC, gritam extremados e enfurecidos pela escolha do elenco para a adaptação dos quadrinhos adultos cults dos anos 1980 e 1990.

Em um tuíte, um dos “fãs” questiona o autor: “Como você pôde escolher uma atriz negra para uma importante personagem icônica e branca?”.

A resposta de Gaiman não podia ser melhor:

“Se você acha que os Perpétuos têm alguma raça ou forma humana específica, você não entendeu alguma coisa em Sandman. Não se preocupe. Assista à série.”

Extremistas racistas sabem ler as palavras. Conseguem fazer conexões com letras, vogais, consoantes e entender o sentido literal das conexões fonéticas, mas pecam e são carentes de intelecto para a função da interpretação que é fundamental quando não se está lendo livros infantis escritos para bebês. Para literatura adulta, incluindo a obra de Gaiman, é preciso cultura, vivência, empirismo, maturidade.

Ou pelo menos o mínimo de empatia, simpatia e curiosidade sobre histórias ficcionais que falam da realidade, seja ela “real” ou imaginária.

Capa da primeira edição de Sandman, de Neil Gaiman, no Brasil, com arte de Dave McKean

A IRMÃ MORTE 

Recriação de um personagem noir antigo, Sandman representou uma revolução nos quadrinhos do final dos anos 1980. Centrada no personagem Dream, ou Morpheus, traduzido para Sonho em português, a série original de cerca de 80 fascículos apresentou ao mundo a família peculiar dos Perpétuos, seres imortais, quase deuses, que representam aspectos da vida humana, todos com nomes começados com “D” em inglês: Dream, Death, Destiny, Desire, Destruction, Despair e Delirium. Todos os textos são de Gaiman, mas cada uma das sagas da série e as histórias paralelas são desenhadas por artistas diferentes.

A Morte, um dos perpétuos e irmã de Sonho, nos quadrinhos originais, tem, quase sempre, a pele branca, praticamente translúcida e cabelos pretos e desgrenhados. Usa uma roupa preta em alusão às roupas usadas pela geração gótica, punk e roqueira dos anos 80 e provavelmente foi inspirada em Siouxsie Sioux, vocalista da banda Siouxsie and the Banshees. Seu irmão, Morpheu ou Sonho, aprisionado em uma gaiola mística pela elite branca ocultista de Londres no início da obra, foi inspirado no cantor andrógino de rock gótico, Robert Smith, que tocou com os Siouxsie and the Banshees e depois montou a banda The Cure, ícone da moda trash 80 e do movimento gay da época.

Morte com pele escura, na versão do desenhista Mark Chiarello

Movimentos são feitos através das épocas baseados em contextos históricos. Aquilo que cada geração precisa na cultura pop é produzido por mentes incríveis como a de Gaiman. Hoje o mundo precisa de Perpétuos que tenham a cara das necessidades dessa geração. Não é o progressismo que toma a obra. É a obviedade das escolhas. A Morte, por exemplo, provavelmente será interpretada por Kirby Howell-Baptiste, que recentemente recriou Anita em Cruella, outra personagem branca clássica da Disney e dona de um dos Dálmatas da animação original 101 Dálmatas. Kirby é uma atriz preta.

Alguns dos atores e atrizes que devem interpretar as personagens de Sandman na Netflix

E o que tem isso de importante para a narrativa da obra que conta a trajetória de seres místicos, míticos, ficcionais e atemporais que já encarnaram inúmeras formas humanas, animais e alienígenas desde o início da criação do nosso mundo? Absolutamente nada.

Sandman negro na história Contos na Areia, 9º fascículo da série original de Sandman, com arte de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III

INCLUSÃO 

Neil Gaiman nunca escreveu sobre pessoas brancas. O autor de Sandman será adaptado pela Netflix depois de anos de negativas a dezenas de convites dos maiores estúdios do mercado de cinema hollywoodiano, e ficará com a produção executiva e direito de tomada de decisões exclusivas sobre sua obra.

A família imortal de Sonho na arte de Frank Quitely

Sandman nunca falou sobre a soberania de entidades brancas sobre outros seres ou indivíduos. A obra literária em formato de quadrinhos de Gaiman trata do efêmero e de relações humanas e não humanas. Sandman fala de magia e da obscuridade da natureza do homem tendo como contraponto seres que transcendem o entendimento infantil do ser humano sobre a sua realidade. Os Perpétuos são deuses que passeiam entre nós. Não são “somente” brancos, humanos, pretos, pardos, mecenas das artes ou asseclas egípcios. Às vezes, são até felinos ou marcianos. Perpétuos são o Infinito. Não há compreensão humana da obra que faça jus à sua essência. Só há a referência cultural limitada de cada leitor. 

SANDMAN. SUPERCALIFRAGILISTICOESPIALIDOSO.

Ler a o obra de Gaiman e entender sua importância é uma obrigação de cada nerd e geek que pretenda bater no peito seu orgulho pela cultura de entretenimento atual assim como entender que os quadrinhos de Sandman são uma obra atemporal, assexuada e de forma alguma foi escrita com o intuito de representar a cor da pele de qualquer leitor ou de seu autor. A obra é repleta de personagens brancas, negras, jovens, velhas, gays, lésbicas, trans…

O pseudo fã que acredita que é necessária a integridade visual dos personagens com as referências originais dos anos 80 precisa urgentemente revisitar a obra para uma maior compreensão daquilo que foi escrito assim como entender a grandiosidade humana inserida nos textos de Neil Gaiman, que logo logo estarão imortalizados, mais uma vez, nessa que será uma das maiores séries sobre quadrinhos adaptados para um streaming pela gigante Netflix.

E como diria a irmã Morte, quando não há nada importante a ser dito sobre algo, diga apenas,

“Supercalifragilisticoespialidoso”

Faz mais sentido que o seu preconceito e sua ignorância. 

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