Sabedoria libertadora de Jesus. E nós?

Faz-se necessário resgatarmos o Jesus histórico com sua sabedoria libertadora, o que poderá inspirar nossa postura ética no rumo da superação das gravíssimas injustiças e violências que campeiam no nosso país

Por Gilvander Moreira1

Em contexto de deturpação da imagem verdadeira de Jesus Cristo privatizado e domesticado por certos tipos de movimentos religiosos (neo)pentecostais na linha da “teologia” da prosperidade, melhor dizendo, ideologia da prosperidade, faz-se necessário e imprescindível resgatarmos o Jesus histórico com sua sabedoria libertadora, o que poderá inspirar nossa postura ética no rumo da superação das gravíssimas injustiças e violências que campeiam no nosso país.

O que é sabedoria libertadora? É o conhecimento e a práxis que libertam, com sabor de vida, não é intelectualismo e nem erudição, muito menos tecnicismo. A sabedoria popular é sábia, mas, muitas vezes, ambígua e, às vezes, contraditória e pode estar contaminada pela ideologia dominante, que são ideias da elite, ideias particulares a partir do lugar social de dominação que são trombeteadas aos quatro ventos como se fossem ideias universais. Entretanto, são meios que carregam preconceitos, discriminações e escamoteiam as verdadeiras causas das injustiças sociais colocando os violentados como responsáveis últimos das violências que sofrem.

Jesus não nasceu sábio e pronto, mas, ao longo da sua curta vida, se tornou um sábio libertador, aprendeu muito com todos/as e com tudo. No ventre de Maria grávida de Jesus, Deus assume o humano. Por ser “filho de mulher” (Gal 4,4), Jesus aprendeu que o divino transcende o humano, mas está tão unido ao humano como “carne e unha”. Na carpintaria de José operário, homem justo, Jesus tomou consciência de ser da classe trabalhadora. Com Maria, sua mãe, e as mulheres da Galileia, Jesus aprendeu a não ser machista e nem patriarcal. Por isso, mesmo em contexto patriarcal que proibia homem entrar em casa onde só tivesse mulheres, Jesus entrou na casa de Marta e Maria e acolheu Maria como discípula e ainda corrigiu com fraternidade Marta, convidando-a a se desvencilhar das amarras do mundo privado e a participar como Maria da vida pública (Cf. Lc 10,38-42).

Em uma Sinagoga da periferia, na Galileia, Jesus aprendeu a ser porta-voz dos exilados e escravizados. Por isso, ao anunciar seu projeto de missão pública, Jesus propôs libertação integral, o que está descrito em Lc 4,16-21, inspirando-se nos servos sofredores da história e nos discípulos do grande profeta Isaías (Is 61,1-2). Em uma pequena e simples sinagoga, o jovem galileu, “movido pelo Espírito”, como toda pessoa humana, proclamou seu projeto de libertação integral. Jesus aprendeu que na missão libertadora se deve propor “ótima notícia para os pobres”, que é libertação econômica; “libertar os presos”, que é libertação política; “resgatar a visão” (Lc 4,18), que é libertação ideológica; “implantar o Ano da Graça” (Lc 4,19), que é Jubileu Bíblico, que significa reorganização geral da sociedade com devolução das terras para os seus antigos donos – os “ancestrais” -, perdão geral de dívidas do povo, ou seja, conquista de uma Terra sem males, uma sociedade do bem viver e conviver, em linguagem afrolatíndia de hoje.

Com o profeta João Batista, Jesus aprendeu a necessidade de lutar pela superação das desigualdades socioeconômicas. Com os zelotas, Jesus aprendeu que precisava combinar solidariedade com luta para conquistar a emancipação política do povo. Com os idosos, Jesus aprendeu a ler os sinais dos tempos. Assumindo a causa dos empobrecidos, Jesus aprendeu a fazer análise da conjuntura de forma crítica e criativa, o que está, por exemplo, em Lc 13,1-9, onde Jesus alerta para não aceitar ingenuamente o que é noticiado pela mídia e nem pela ideologia dominante.

Ao ver e sentir a exploração que o imperialismo romano causava, Jesus denunciou o governador Herodes (“uma raposa”, Lc 13,31-33), a tributação injusta (Lc 20,25), o aprisionamento em massa e por esta sabedoria, Jesus foi condenado à pena de morte pelo Estado em conluio com o sinédrio, poder religioso dominado por saduceus, que eram os grandes proprietários de terra da época. Com a mulher cananeia (Mt 15,21-28, sirofenícia, segundo Mc 7,24-30), Jesus se libertou do patriotismo e do “verde amarelismo” que excluíam. Com os que eram considerados impuros e hereges, Jesus aprendeu a ser subversivo. Por isso, apontou um samaritano como exemplo a ser seguido e “chutou o pau da barraca” ao expulsar os vendilhões do templo, os que lucravam usando e abusando do nome do Deus da vida.

Com parte dos fariseus, Jesus aprendeu a contar parábolas, linguagem que o povo entendia e ficava com os olhos brilhando diante das descobertas desconcertantes e provocantes que Jesus suscitava com suas metáforas exemplares. Convivendo com o povo superexplorado, Jesus aprendeu que tinha que ser “pé no chão”, estar junto do povo, misturado, partilhando suas dores e alegrias. Jesus aprendeu que não podia tolerar a privatização do sistema de saúde nas mãos dos sacerdotes que cobravam para fazer ritos de purificação, após expulsar a maioria do povo para fora da cidade, taxando-os de impuros. Por isso, Jesus fazia os milagres gratuitamente em processos de solidariedade libertadora. Convivendo com o povo simples e oprimido, Jesus aprendeu a pedagogia da partilha dos pães (Cf. Jo 6,1-15; Mt 14,13-21; Mc 6,32-44; Lc 9,10-17) que deságua na abundância e envolve uma série de passos articulados e interdependentes: 1) Jesus está no meio do povo faminto convivendo; 2) Vê a realidade nua e crua a partir dos empobrecidos; 3) Comove-se com a dor do povo sofrido; 4) Provoca a todos/as para buscar solução para o grave problema social, fruto de injustiça social: a fome; 5) Discerne qual projeto pode ser o caminho da superação da fome; 6) Exclui a postura de quem queria se esquivar da responsabilidade diante do problema – “despede as multidões para elas irem …” – e o projeto de mercado apresentado por Filipe: “comprar pão para …”; 7) Acolhe o projeto socialista, de partilha – humano – apresentado pelo discípulo André: “Eis uma criança com cinco pães e dois peixes”; 8) Propõe organizar o povo em grupos de 5, de 10, de 50, de 100 etc; 9) Abençoa os pães e os peixes, ou seja, cultiva a espiritualidade e a mística que envolve nossa vida e toda a realidade; 10) Conta com lideranças no meio do povo para “repartir o pão!”; 11) Propõe que seja recolhido o que está sobrando: “recolham o que sobrar”. Eis a pedagogia libertadora e emancipatória de Jesus.

Jesus aprendeu que não pode viver conciliando com podres instituições. Descobriu que só solidariedade não transforma relações sociais opressoras. Jesus aprendeu que é preciso lutar por justiça profunda. Jesus aprendeu a “sabedoria da luz, do sal e do fermento”. Mesmo pouca e pequena, a luz escorraça as trevas, pois incomoda muito os “filhos das trevas”. Em quantidade ínfima, o sal, aparentemente frágil, incomoda “o arroz, o feijão, a carne e é imprescindível ao cozinhar”. O fermento, mesmo sendo pouco, incomoda a massa e, por isso, a faz crescer.

Jesus aprendeu a acreditar no humano, pois via nas pessoas sofredoras não um poço de miséria, mas uma infinita força e luz interior, o que é manifestado pela exclamação de Jesus, repetida sempre: “Tua fé te salvou”, ou seja, postura existencial de cabeça erguida, amor no coração e utopia no olhar: o paralisado que “dá um salto”, o cegado que “quer ver” e não se contentar em ficar recebendo migalhas etc.

Ao perguntarmos aos quatro evangelhos da Bíblia qual é a característica primordial de Jesus Cristo enfatizada em cada evangelho, o Evangelho de Marcos revela Jesus priorizando a luta pela superação da opressão política; o Evangelho de Lucas revela um Jesus indignado diante da opressão econômica; o Evangelho de Mateus mostra Jesus lendo a história na ótica dos oprimidos sob o crivo da misericórdia e não do sacrifício; o Evangelho de João mostra Jesus apontando o poder religioso como opressor. Jesus é como o “vinho novo” que torna a vida uma festa sem fim. Por outro lado, o 4º evangelista mostra a institucionalidade religiosa enrijecida e opressora. Enfim, Jesus aprendeu uma sabedoria libertadora. Nós também podemos assimilar o que liberta e nos desvencilhar de tudo o que nos desumaniza. Com a sabedoria libertadora de Jesus, que está em sintonia com a sabedoria dos povos indígenas e dos povos tradicionais, podemos e precisamos ser “luz no mundo”, “sal da terra” e “fermento na massa”.

08/06/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – Sabedoria libertadora de Jesus: e nós? – CEBI do Vale do Aço, MG. Por Frei Gilvander – 06/6/2021

2 – Frei Carlos Mesters: Explicando a Bíblia a partir da vida do povo | Quadro: Fé na periferia do mundo

3 – Em Jesus, Deus vem até nós – Frei Carlos Mesters – 09/5/2020

4 – A mensagem de Jesus é feita para os pobres – Palavras de Fé, com frei Gilvander – 18/3/2021

5 – Dimensão social do Evangelho de Jesus e o lugar social do CEBI: LUTA POR JUSTIÇA. Por Frei Gilvander

1 Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: [email protected]  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Se é para acreditar em Jesus Cristo, que seja assim, mas por favor… não há “Jesus histórico”! A Bíblia não é um livro de história, mas de “estórias”. Os personagens ali retratados são tão reais quanto o Papai Noel ou o Batman.

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