Rússia X Ucrânia: a guerra real, a versão midiática e a guerra nas redes

Diferentes dimensões do conflito Rússia Ucrânia: “a guerra real”, "a versão midiática da guerra" e a “guerra nas redes sociais”

por Francisco Fernandes Ladeira, Ilustração Marta Moura

Nos últimos dias, a guerra envolvendo Rússia e Ucrânia tem sido a principal pauta da agenda pública global, superando, inclusive, a (ainda não terminada) pandemia da Covid-19. Mesmo quem nunca demonstrou interesse por geopolítica, muito provavelmente, em algum momento, se manifestou sobre o ocorrido. Nesse sentido, podemos dizer estão acontecendo, simultaneamente, “três” conflitos no Leste Europeu: “a guerra real”, “a versão midiática da guerra” e a “guerra nas redes sociais”.

Guerra Real

A “guerra real”, como todo acontecimento geopolítico, envolve complexos fatores históricos, econômicos, geográficos, políticos e culturais. Para contextualizá-la historicamente, devemos nos remeter, pelo menos, ao ano de 2014, quando um golpe de Estado, na Ucrânia, retirou do poder um governo democraticamente eleito (aliado a Moscou) para instituir um regime fantoche pró-Ocidente. Na imprensa ocidental, esse episódio ficou conhecido por eufemismos como “revolta popular”, “Primavera Ucraniana” e “Euromaidan”.

A partir de então, grupos e milícias neonazistas passaram a atuar com o apoio tácito do governo central (atacando, principalmente, militantes comunistas e rebeldes pró-Rússia no leste do país), intensificou-se a repressão a movimentos separatistas, o ensino da língua russa foi proibido nas escolas,   partidos políticos de esquerda foram colocados na ilegalidade e aumentaram as possibilidades de a Ucrânia integrar a Otan (o que, além de descumprir um acordo, feito no início da década de 90, de que essa organização militar não ultrapassaria a fronteira oriental da Alemanha, poderia abrir espaço para a instalação de mísseis das potências europeias e dos Estados Unidos próximos ao território russo).

Além disso, conforme reconheceu a subsecretaria para Assuntos Políticos dos Estados Unidos, Victoria Nuland, nos últimos anos foram criados laboratórios na Ucrânia (patrocinados pelos EUA) com capacidade de produzir armas biológicas (violando assim um tratado internacional contra este tipo de recurso bélico, assinado há meio século).

Nesse conturbado e controverso cenário, em 2019, Volodymyr Zelensky, ex-humorista, sem nenhuma experiência política, foi eleito presidente da Ucrânia, com um discurso antissistema e anticorrupção, contrário à Rússia e favorável ao Ocidente (aumentando ainda mais as animosidades e provocações entre Kiev e Moscou).

Portanto, na “guerra real”, há uma compreensível preocupação do governo do Kremlin com a integridade de seu território (isso não significa, evidentemente, “passar pano” ou ser pró-Putin, como acreditam muitos indivíduos com dificuldades hermenêuticas).

Em contrapartida, muitos especialistas da área de Direito Internacional questionaram e contestaram a legitimidade da invasão russa à vizinha Ucrânia (haja vista que se trata de um Estado-Nacional soberano, internacionalmente reconhecido).

Divergências à parte, em um aspecto, os diferentes analistas são unânimes: o xadrez geopolítico mudou, a ordem unipolar pós-Guerra Fria, com hegemonia estadunidense, cedeu lugar a um novo ordenamento das relações internacionais, com a aliança sino-russa gerando um importante centro de poder mundial, capaz de rivalizar em pé de igualdade com o establishment ocidental.

Versão midiática da guerra

Por outro lado, na “versão midiática da guerra”, diferentemente da “guerra real”, as coisas são bem mais simples, entendidas a partir de uma visão unilateral dos fatos (ou seja, somente a versão da Ucrânia/Otan). 

Assim, na cobertura dos noticiários internacionais, temos exemplos emblemáticos sobre como ocorrem as manipulações relacionadas à geopolítica global; desde a escolha das fontes utilizadas (somente agências de notícias ligadas aos países da Otan), passando pela seleção de imagens (áreas civis de cidades ucranianas alvejadas pelo exército russo) e chegando aos artigos de opinião e na escolha dos “especialistas” convidados para falar sobre geopolítica (todos, evidentemente, se limitando a reproduzir os discursos tendenciosos e enviesados de GloboNews, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Bandeirantes e similares).  

“quem não se comporta conforme o script combinado é achincalhado em público”

Quem não se comporta conforme o script combinado, ou seja, busca levantar uma visão multidimensional do conflito Rússia Ucrânia, é achincalhado em público, como o caso do professor e historiador Rodrigo Ianhez, alvo de um chilique do comentarista da GloboNews, Jorge Pontual, somente por apresentar a versão russa sobre o conflito no Leste Europeu.

Também é importante ressaltar que a guerra Rússia Ucrânia, em sua versão midiática, assumiu ares de um épico ou uma telenovela (daquelas mais caricatas), com seus “mocinhos” e “vilões”.

Nos discursos dos principais veículos de comunicação, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky –  que expôs sua população como bucha de canhão da Otan e, de maneira irresponsável, incentivou seus compatriotas a se armarem e enfrentar o poderoso exército russo –  foi alçado ao status de “novo herói mundial”.

Uma matéria do DW Brasil trouxe o seguinte título: “Zelensky: de humorista a herói nacional”. No jornal O Globo, Guga Chacra se referiu ao presidente ucraniano como “heroico comediante”. Para a revista Isto é, “[Zelensky] representa agora seu melhor papel, na defesa da Ucrânia em tempos de guerra”. Também nessa publicação, Denise Mirás escreveu: “Surge um novo herói mundial: Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, exibe patriotismo, coragem e hombridade no ataque covarde da Rússia””.

Já o presidente russo Vladimir Putin – antagonista de Zelensky – tem sido representado como a encarnação do mal, comparado a ninguém menos do que Adolf Hitler. Como bem sintetizou Fernando Castilho, em texto publicado no GGN, “a mídia ocidental [incluindo a brasileira] fez de Putin um boneco de vodu”.

“Todo mundo adora uma história de Davi contra Golias, um arquétipo presente em inúmeros mitos ancestrais. Mas poucas vezes o mundo teve a oportunidade de ver uma história dessas se desenrolando em nossas telas, ao vivo, com personagens tão definidos e fascinantes. Por causa dessa história, Zelensky, sem nenhuma possibilidade de vencer no campo bélico, está ganhando a guerra da narrativa. Com todo seu exército de guerreiros virtuais, treinados para distorcer fatos até o ponto do absurdo, seu xará, Vladimir Putin, está sendo ridicularizado em inúmeros memes”, afirmou Vilma Gryzinski, na revista Veja.

É bom (e necessário) frisar novamente: não se trata, obviamente, de defender o presidente russo (o que soaria bastante controverso), mas apenas denunciar a linha editorial “dois pesos, duas medidas” presente na imprensa brasileira. Líderes mundiais, responsáveis por golpes de Estado e bombardeios mundo afora – como Barack Obama, Emmanuel Macron e Joe Biden – não têm a mesma representação negativa de Vladimir Putin. Pelo contrário, são idolatrados pelos principais articulistas da grande mídia.

“a solidariedade seletiva na imprensa hegemônica”

Ainda nesse padrão jornalístico, chama atenção a “solidariedade seletiva” na imprensa hegemônica. Sérvia, Afeganistão, Iraque, Líbia, Mali, Síria e Iêmen foram alguns dos países bombardeados pelos Estados Unidos e aliados nas últimas décadas. Porém, esses povos não receberam nem um décimo da consternação midiática dedicada à Ucrânia.

Guerra nas redes sociais

Por fim, a “guerra nas redes sociais” (espaço onde não há limites para os devaneios humanos) tem sido marcada por fake news, falsificações históricas, desinformações, análises apaixonadas e clima de torcidas de futebol. “O avanço da invasão da Rússia na Ucrânia tomou a internet nas últimas semanas. Segundo o Google, em fevereiro, o termo guerra subiu ao maior nível de pesquisas desde 2004, quando houve o agravamento da situação do Iraque”, noticiou a CNN Brasil.

Para Christian Perrone, em depoimento para a anteriormente citada CNN Brasil, “essa é a primeira vez na História que estamos acompanhando uma guerra desse tamanho por meio das redes sociais”. De acordo com levantamento realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), após a Rússia invadir a Ucrânia, as reações bolsonaristas nas redes sociais foram de críticas ao “esquerdista” Joe Biden e incertezas sobre Putin – para alguns, um “conservador”, “aliado do mito” e “agente contrário às forças do globalismo”; para outros, um “comunista”, “amigo do Lula” e “anticristo”.

Entre as principais fake news sobre o conflito no Leste Europeu estão uma capa da revista Time, que compara Putin a Hitler, e uma foto de Zelensky segurando uma camisa da seleção da Ucrânia estampada com uma suástica nazista. Esta última imagem falsificada, inclusive, foi compartilhada no Twitter, pelo presidente do Partido da Causa Operária (PCO), Rui Costa Pimenta, cuja o posicionamento sobre o conflito Rússia e Ucrânia inverte o maniqueísmo midiático, concebendo Vladimir Putin como “libertador dos povos oprimidos do planeta” e “paladino da luta contra o imperialismo”.

“na guerra, a primeira vítima é a verdade”

Lembrando uma clássica frase, bastante citada, porém de autoria incerta, “na guerra, a primeira vítima é a verdade”. Atualmente, com a falsificação dos fatos ao alcance de todos, via mídias sociais, podemos dizer que a “verdade” nunca foi tão vítima.

Sendo assim, diante de acontecimentos como o conflito Rússia Ucrânia, com grande repercussão nas mídias tradicionais, na internet e nas conversações cotidianas (gerando uma enxurrada de narrativas, tanto verídicas quanto equivocadas), não basta que o indivíduo tenha livre acesso a informações; é preciso desenvolver capacidades cognitivas suficientes para selecioná-las, filtrá-las e, sobretudo, compreendê-las de maneira crítica e reflexiva.

***

Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autor de dez livros, entre eles “A ideologia dos noticiários internacionais” (Editora CRV). E-mail: [email protected]

COMENTÁRIOS

4 respostas

  1. Maravilhoso artigo. Até que enfim vejo alguém dizer a verdade sobre os fatos. Parabéns!!

  2. Quanta lucidez. Nenhum, NENHUM jornalista das mídias ‘oficiais’ falam a verdade. Penso que nem eles acreditam nas enxurradas de besteira que publicam. Parabéns pela matéria.

  3. A bestificação massiva dos indivíduos pela mídia para que enxerguem apenas a superfície dos fatos. Essa é a verdade, excelente texto.

POSTS RELACIONADOS