QUESTÃO MILITAR

 

 

ARTIGO

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

 

Charge de Netto

Costuma ser imediata a associação de Jair Bolsonaro com a ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Faz todo sentido, pois Bolsonaro ficou quase 30 anos no Congresso nacional usando a tribuna parlamentar para elogiar a Ditadura. Todo 31 de março lá estava o deputado Bolsonaro a soltar rojões em comemoração ao golpe de 1964.

Porém, se formos olhar com cuidado a trajetória política de Bolsonaro para além da retórica, perceberemos que seus vínculos com as forças armadas precisam ser relativizados. Bolsonaro foi expulso do Exército em condições até hoje nebulosas, não chegou às altas patentes, tinha fama de arruaceiro e indisciplinado. Passou mais tempo no Congresso nacional como deputado de baixo clero do que no Exército como capitão de artilharia.

Bolsonaro nunca foi uma liderança militar envolvida na política institucional. Era um político profissional que, por acaso, tinha sido militar.

Essa relação um tanto distanciada entre Bolsonaro e as Forças Armadas fica ainda mais clara se acompanharmos na lupa ampliada a crônica de seu governo.

É verdade que os generais estão no governo desde o início, mas não eram o núcleo mais influente. Nem perto disso. É que um governo sempre é disputado por dentro, com vários núcleos competindo entre si o poder de influenciar o presidente.

Durante o primeiro ano de governo, Bolsonaro esteve mais próximo do núcleo ideológico, operacionalizado pelo Carluxo, chefe do gabinete do ódio, e comandado a partir da Virgínia, pelo autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho. Também Eduardo Bolsonaro tem atuação destacada aqui. Em fevereiro de 2019, Steve Banon anunciou Eduardo como o líder sul-americano do “The Moviment”, movimento internacional de extrema direita.

Desde a década de 1990 que Olavo de Carvalho dizia que a ditadura militar não tinha sido capaz de dar cabo do marxismo cultural no Brasil. A ditadura teria “prezado demais pela institucionalidade e não teve a coragem necessária para arrancar o mal pela raiz”, nas palavras do próprio Olavo em sua página do twitter.

O núcleo ideológico nunca confiou no núcleo militar. Isso explica os constantes ataques do gabinete do ódio aos generais. Tudo sempre foi feito publicamente, sem nenhum pudor, e com o consentimento silencioso do próprio presidente.

Carluxo, Eduardo e Olavo de Carvalho usavam suas contas no twitter para denunciar o que consideravam ser o pouco compromisso dos generais com o presidente. Não raro, falaram em traição, como no caso da tramitação da PLN04/2019, que propunha a liberação de 249 bilhões de reais em crédito suplementar para o governo. Carluxo ficou muito incomodado com o pouco envolvimento dos generais na causa.

Hamilton Mourão era o principal alvo. Heleno também não passou imune. No primeiro semestre de 2019, os ataques foram ininterruptos, culminando com a demissão do general Santos Cruz da Secretaria de Governo, no final de junho.

Se o deputado Bolsonaro era nostálgico, saudosista da Ditadura, o presidente Bolsonaro é outra coisa. É fundamental destacar as diferenças entre o deputado de baixo clero e o presidente carismático.

O deputado é filho de março de 1964. O presidente é filho de junho de 2013.

O presidente e seus conselheiros mais próximos nunca confiaram nas Forças Armadas. O objetivo inicial não era reeditar a ditadura nos moldes de 1964. Os objetivos eram outros.

Primeiro, investir na constante polarização ideológica a ponto de fidelizar uma base social orgânica leal, disciplina e armada. Depois, organizar um regime de força fundado em milícias, mais fáceis de serem doutrinadas no compromisso com o projeto maior: “Destruir o globalismo cultural”, pra citar outra vez Olavo de Carvalho.

Não à toa, em junho de 2019, o governo publicou quatro versões do “Decreto das armas”, liberando para comercialização ampla armamentos de uso exclusivo das Forças Armadas, sem consultar as Forças Armadas. Definitivamente, o presidente Bolsonaro não é um saudosista da Ditadura Militar.

Mas como na política o mundo gira rápido, Bolsonaro foi obrigado a se reaproximar dos generais, levando, em fevereiro de 2020, Braga Netto para a chefia do ministério politicamente mais importante.

Sem apoio no Congresso depois de ter rompido com o PSL (novembro de 2019), sob constante desconfiança do STF e com a derrota da revolta miliciana do Ceará (fevereiro de 2020), Bolsonaro precisou apelar para os generais. Não fez por ideologia, não fez por projeto. Fez porque estava acuado, isolado.

Onde quero chegar?

Quero dizer que as relações entre Bolsonaro e os generais sempre foram tensas e marcadas pela desconfiança recíproca. Até agora, eles nunca estiveram do mesmo lado.

Até agora.

Em 2 de maio, Sérgio Moro prestou depoimento na sede da Polícia Federal, lá em Curitiba. Disse que Bolsonaro falou abertamente em reunião ministerial que queria interferir na PF para proteger seus filhos. Todos os ministros estavam presentes. Todos, incluindo os generais Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno.

Se Moro estiver falando a verdade, os generais presenciaram Bolsonaro cometendo um crime e não falaram nada. A omissão é crime de prevaricação. Na pessoa de Celso de Mello, o STF agiu, convocando os generais pra depor.

O STF colocou três generais do Exército numa sala de depoimento, sendo interrogados pela Polícia Federal. Esse é daquele tipo de evento que sempre tem desdobramentos, nunca fica por isso mesmo. Na voz de Mourão, os generais reagiram. Mourão foi à imprensa criticar o STF, acusar a corte de “ultrapassar seus limites constitucionais”. Para os generais envolvidos na confusão, resta apenas defender Bolsonaro e se enlamear nas picaretagens envolvendo o clã presidencial. Caso contrário, assumem a prevaricação.

Pela primeira vez, Bolsonaro e os generais estão do mesmo lado. Temos aqui um fato novo na dinâmica da crise. Um fato de primeiríssima importância, e da maior gravidade.

“As Forças Armadas não apoiam nenhum tipo de golpe contra a democracia”, reza o mantra repetido pelas notas publicadas pelo Ministério da Defesa sempre que Bolsonaro ameaça os outros poderes da República.

As Forças Amadas não apoiam golpe até o momento em que começam a apoiar, até o momento em que surge um motivo para apoiar, até o momento em que começa a existir uma questão militar.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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