Autorretratos.
O mundo parava e eu ajeitava a banana. Pra cima o sorriso, pra baixo o mau humor. Sorrir ou reclamar? Encarar ou praguejar?
Qual é o meu posicionamento frente a miséria do mundo?
O que eu penso sobre a educação e a saúde pública brasileira?
Eu não quero saber?
Eu acredito em meritocracia?
O mundo derretendo e eu cortando brócolis, lavando batata.
Os heróis nos hospitais e nas ruas, e eu lavando roupa, jogando botão, contando histórias infantis.
Eu sou racista?
Existe racismo estrutural no Brasil?
O que é racismo estrutural?
Quem arrumou minha cama hoje?
Canalhas mentindo, debochando da dor, celebrando a morte, e eu sentindo o cheiro bom do perfume que ela exalava.
Sou de esquerda?
Sou de direita?
Odeio quem é de esquerda?
Odeio quem é de direita?
A corrupção acabou no Brasil? Nunca me corrompi? Fiz alguma autocrítica ultimamente?
Fiz tanto café enquanto outros eram essenciais.
Fiz tanto café enquanto outros mentiam descaradamente, espalhavam notícias falsas, riam daqueles que são frágeis, dos mais idosos, dos que vivem amontoados, “acostumados a nadar no esgoto”, “é só uma gripezinha”, “o que eu tenho com isso”, “não sou coveiro” “e daí?”.
Eu acredito em Deus?
Deus é amor?
Só se for o Deus da minha religião?
Eu enxergo a dor do outro?
Que fim eu quero dar aos usuários de crack da Cracolândia?
Onde exerço minha hipocrisia?
Acendo velas.
Seco as roupas.
Visito pátio interno do prédio onde moro.
Tomo banho.
A natureza está sendo destruída?
Se as promessas do capitalismo forem estendidas a todas as pessoas, o planeta dará conta?
Eu sou contra o capitalismo?
Faço um post contra o consumo e o capitalismo no meu instagram, usando meu smartphone, minha internet?
Leio, canto, fotografo. Lavo a louça. Eu sempre tenho razão? Não devo nada a ninguém? Eu tenho culpa no cartório? Eu acho a Globo lixo?
Nos primeiros meses da quarentena, me vi totalmente trancado em casa, saindo o mínimo possível.
As tarefas do dia a dia, a quase impossibilidade de trabalho em que me encontrei, aliados ao tempo em espera que nos encontrávamos e ainda nos encontramos, me proporcionaram mais tempo de reflexão, que geraram, entre outras, essas perguntas escritas acima e abaixo.
As balas perdidas não me atingem? Eu lavo as minhas mãos? Tenho culpa no cartório? Quando me olho no espelho gosto do que vejo? Qual é o meu lugar de fala como indivíduo? Qual é o meu lugar de fala como cidadão?
Dito isso, nada como alguns autorretratos para tentar se conhecer melhor.
Acredito na ciência. Não faço “arminha” com as mãos. Sou palmeirense.
Autorretratos.
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Minibio
Roberto Setton é fotógrafo desde o século passado. Nesse século vem trabalhando com fotografia e vídeo.
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Para conhecer mais o trabalho do artista
https://www.instagram.com/robertosetton/
https://www.instagram.com/mascateluminoso/
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O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos e imagéticos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, de quintal, de rua, documentação desses dias de novas relações, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente.
Outros ensaios deste projeto: https://jornalistaslivres.org/?s=futuro+do+presente
Uma resposta
Muito interessante e inteligente. Adorei.