A não cor.
O indizível, o invisível.
Mas não é o branco em soma de todas as cores luz, nem o preto em integração de todas elas na matéria. No vazio, no espaço entre, para além do preto e branco; onde está a não cor? No espaço além?
Clarice poderia escrever sobre ela…
“eu tenho o impessoal dentro de mim e não é corrupto e apodrecível pelo pessoal que às vezes me encharca”
A não cor é o mistério.
Pensar sobre ela seria pensar em vão, ou seria pensar no vão entre todas coisas? No silêncio, nas pausas, no espaço entre. A não cor poderia ser um verbo. Um verbo sem tempo e espaço. É ela que possibilita a linguagem de criar mundos.
A não cor pode se manifestar como matéria pulsante, ou como o Ouroboros virado do avesso. Ela também pode se apresentar como vazio. Mas ela não é ela, não tem gênero. Não é algo que pode conter, nem o que pode estar contido, não é o vazio repleto de ar. Talvez ela deixe uma pista entre o vazio de cada inspiração e expiração .
Apenas isto. Como um agir sem agir, como um “ser agido”; porque ela pode nos habitar.
Ela não é ela, e não pode estar contida, mas ela nos habita.
Ela habita tudo o que há. Ela não é ela, mas prefiro chamá-la assim para que não seja confundida com um possível Ele. O Ele foi construído com formas, nomes, cores e valores. O Ele criou feridas; a não cor deixa pistas para quem consegue escorregar por essas feridas e fazer a transmutação.
A não cor em espiral, com seus labirintos que eu penso existir uma saída. Será que existe uma saída ? Existe uma porta de entrada para a não cor ? Enquanto escrevo este texto, perco totalmente as possibilidades de senti-la, e simultaneamente, como imagens sobrepostas em duas películas transparentes, ganho totalmente as possibilidades de senti-la. Perco e ganho simultaneamente.
Há muito tempo sonhei com uma chave. Eu havia sido jogada em uma prisão, mas deixaram a chave em minhas mãos. Pensei: – quem me jogou nesta prisão? Talvez meus próprios eus, e a não cor deixou a chave como uma pista.
Entre uma inspiração e expiração posso escutar. Eu mesma deixei a chave em minhas mãos.
.
Identidade e Ancestralidade
Cäta
por Gal Oppido.
Eros e Tânatos de mãos dadas fadados à erupção silenciosa…
Quando abraçou o salto da morte daquele que é matéria da sua matéria, interceptando o futuro, fez de Cronos seu confidente e relator.
O corpo talhado à maneira dos humanos de Okinawa, Catarina, uma Gushiken, tangencia as iguarias em medidas desiguais dos oceanos singrados por seus ancestrais; as ondas revoltas a partir do Atlântico e a serenidade do Pacífico.
Sua batchan e o caminho milenar que alinhavou sua genética lhe deram mãos e corpo para descrever pansensorialmente o mundo a que pertence, material e imaginado.
Seu jitchan a conectou através das cartas-pontes aos enredos familiares e revelou sua própria índole poética incrustada num corpo ocupado com a lógica imigratória. Para processar estes insumos, Catarina talhou um ofício particular onde instrumentaliza seu fazer criando uma gramática que se arquiteta em suportes plásticos múltiplos, desde a pintura até a instalação, passando pelas caligrafias e performances onde seu corpo agora também se vê potencializado como significante .
A série de auto-imagens são como cortes analíticos temporais, crônicas, Cronos novamente, e trazem à tona um Corpo que Quer e, para tanto, promove uma polidura em superfícies oxidadas por moralidades e expõe seu acesso à literatura visual de erotismo popular na tenra adolescência, e que a introduziu de alguma maneira a uma leitura vertebrada do corpo e seus desejos .
Sabemos que a nossa mente é lava em franca ebulição que mimetiza o núcleo da Terra e seus escapes vulcânicos, pois sim, Catarina opera sua massa ardente através das fendas flamejantes que dão curso à sua expressão, uma mente alimentada por gerações de caminhantes pela crosta do planeta que incorpora na sua manifestação intelecto-corpórea a escriba essencial, que traduz a aventura humana em matéria concreta que faz da arte diplomacia sem fronteiras.
.
Para conhecer mais o trabalho da artista
https://www.instagram.com/catarina_gushiken/
.
O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos e imagéticos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, recriar seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, de quintal, de rua, documentação desses dias de novas relações, essenciais, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente.
Outros ensaios deste projeto: https://jornalistaslivres.org/?s=futuro+do+presente