Odoyá Iemanjá, Um Ritual de Fé nos Tempos da Pandemia.
Como viver a fé diante do perigo e da morte? Toda forma de ritual exige preparo: da escolha do presente, das emoções que serão ali entregues, do vínculo que se estabelece com o sagrado. No dia 2 de fevereiro, na festa de Iemanjá, o diálogo é com as águas. O mar se abre para nos receber num processo de renovação da crença, de limpeza, de respeito e, em 2021, especificamente, no silêncio. É que, nas nuances da história, essa, talvez, tenha sido a celebração mais silenciosa de todas.
Sem o imenso festival que se monta nas ruas de Salvador, sem as aglomerações nas praias, com a limitação, quase proibição total da saída de barcos para as oferendas, sem a euforia produzida pelo encontro, pela música e pela dança, sem uma programação oficial, a data foi tomada por outras dinâmicas e reestruturada a partir da perspectiva do mais subjetivo: qual é a sua relação com o mar? O que te levaria a sair de casa, atravessando o pior momento desses tempos pandêmicos, para manter a oferenda? Como é possível, novamente, expressar e viver a fé diante de tantos perigos?
Nos últimos anos, a festa de Iemanjá, em Salvador, tem se convertido num espetáculo que obedece a gramática mais contemporânea sobre a construção da imagem. A verdade é que a transformação do Orixá num ícone pop parece irreversível: aparece nas músicas, aparece tatuado nos corpos de quem desconhece as religiões de matriz africana, está na escolha das flores bonitas para a foto do Instagram. Nada disso deveria ser, necessariamente, um problema, mas sempre precisa ser um chamado à reflexão. E, como se tem dito nos últimos 11 meses, fomos interpelados pelo “novo normal” e tudo mudou. A virada da maré clama por águas de transformação.
No ensaio de Ronaldo Franco, fotógrafo paulista cujo trabalho está sempre permeado pelos detalhes da realidade, focalizando nas figuras anônimas que emergem, de repente, como protagonistas de um mundo que constantemente lhes reserva a negação da própria existência, aparece um trabalho que transita entre a imaginação, a mística, a religiosidade, e o documento histórico. Basta uma foto em que a máscara aparece cobrindo rosto de alguém para a gente localizar o tempo. Por outro lado, esse é um trabalho que entra na Bahia e suas tradições mais profundas: é, afinal, a festa da rainha das águas e numa das ilhas mais exuberantes que temos, a Ilha de Boipeba, em Cairu.
Esse deslocamento da cobertura da capital para o interior já é, por si só, sugestivo. A festa de Iemanjá é construída, vivida, alicerçada em muitos rincões e, às vezes, são nos lugares menos visibilizados em que nos deparamos com as manifestações mais sólidas e, possivelmente, menos instragamáveis. É daí que recobra força a importância de um homem negro e fotógrafo, um dos poucos sem sombra de dúvidas que cobrem os festejos, segurar seu equipamento e percorrer essa Ilha em busca de momentos que possam, minimamente, falar sobre o dia 2 de fevereiro de 2021.
Um preto está no mar, outro aparece sorrindo de cabeça para baixo, algumas pessoas levam flores e vão até o cais na tentativa de conseguir um dos poucos barcos disponíveis para oferenda, uma Iemenjá negra brilha na água. Na Vila de Moreré, a Escola Municipal recebe o povo do terreiro e os atabaques começam na noite anterior, rompem a madrugada e terminam num samba de roda na areia da praia. Quase tudo foi diferente e essa interrupção da “normalidade” nos leva, no dia de Iemanjá, a retomar o questionamento: como viver a sua fé diante do perigo e de tantas mortes?
Como no movimento das marés, das ondas e do fluxo, as águas vieram pedir silêncios. A presença deixa de ser a coletiva e passa a ser a de cada um. O olhar para dentro, olhar para o mundo dentro de si, desligar o som, conter os passos, interromper a dança, abraçar sem tocar, dividir a comida e o momento entre poucos. A entrega dos pensamentos é o nosso presente. Iemanjá é mãe preta e ela é quem entende de acolhimento. Nesse 2 de fevereiro, quando os caminhos parecem conduzir à destruição de tudo, a saída possível é transformar-se no próprio mar. É assim que expressamos nossa fé diante da morte que nos ronda: nos tornando sagrados. Odoyá!
Texto: Gilvan Reis, jornalista, morador da Ilha de Boipeba.
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Para conhecer mais o trabalho do artista
https://www.instagram.com/ronaldo__franco/
https://vimeo.com/ronaldofranco
https://www.instagram.com/gilvan_reis/
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Minibio
Ronaldo Franco fotógrafo desde 1996, atualmente trabalhando também como vídeomaker, mora na Ilha de Boipeba desde 2017.
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O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos e imagéticos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, de quintal, de rua, documentação desses dias de novas relações, essenciais, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente.
Outros ensaios deste projeto: https://jornalistaslivres.org/?s=futuro+do+presente
Uma resposta
Como mãe de Ronaldo fiquei muito orgulhosa dessa ligação dele com o sagrado.A saudade bateu forte.
Salve Iemanja!!!!!