Profetas versus sacerdotes

Por Frei Gilvander Moreira

Terceiro pequeno texto para iluminar as Comunidades Cristãs no mês da Bíblia de 2024 – setembro – sobre o Livro de Ezequiel. O Livro de Ezequiel apresenta Ezequiel como sacerdote e profeta. Importante ressaltar que há várias formas de compreender o que é sacerdote e profeta. Sacerdote no sentido mais profundo e etimológico do termo significa aquele que revela o sagrado existente nas relações humanas, naturais e sociais. Mas também ‘sacerdote’ pode significar o funcionário de uma instituição religiosa, responsável pela realização do culto, com poder sobre a comunidade e que geralmente é encarado como “representante de Deus” nas questões tidas como sagradas. Neste sentido, em muitas passagens bíblicas os profetas e profetisas denunciam sacerdotes como cúmplices de processos de opressão e de exploração. Por exemplo, em Juízes 19 a 21, são os sacerdotes que tocam a trombeta conclamando para guerra fratricida entre as comunidades que deveriam viver na fraternidade. 

Em Amós 7,10-17, o profeta Amós é expulso do templo de Betel pelo sacerdote Amasias, que acumpliciado ao rei Jeroboão, opressor, fica incomodado com a profecia de Amós que anuncia que Israel será exilado e Jeroboão será morto. Em Am 7,14, Amós se recusa a ser considerado profeta segundo a ótica de um sacerdote vassalo do poder político. Amós denuncia e ridiculariza o sacerdote manietado pelo rei opressor. Am 7,10-17 quer legitimar o conteúdo da profecia de Amós e ajudar as comunidades a superarem todos os preconceitos que possam existir contra o profeta por causa da sua origem humilde. 

O relato de Am 7,10-17 quer nos dizer que a profecia vem da margem, da periferia, do meio dos marginalizados e excluídos. São estes, por excelência, os “intérpretes de Javé”, profetas e profetisas. O rei (e a monarquia) e o Templo expulsam o profeta, silenciando-o. Sem profetas, o povo sofrerá muito mais. Ai de um povo que não escuta seus profetas e profetisas e, pior ainda, que os persegue, expulsa e os silencia.

Textos proféticos na Bíblia denunciam também os falsos profetas, os profetas “profissionais” ligados à corte do poder político, econômico e religioso. 

Na Bíblia temos também a reação dos profetas diante das tentativas de privatização da profecia, deixando-as restritas às instituições religiosas. É o caso denunciado no livro de Números 11. Enquanto os povos escravizados enfrentavam a caminhada no deserto, após a libertação do imperialismo dos faraós no Egito, e enquanto lidavam com os desertos interiores, a Bíblia narra que os profetas Eldad e Medad estavam profetizando no Acampamento, fora da tenda (Nm 11,27), na caminhada pelo deserto rumo à conquista da “terra que mana leite e mel” (Ex 33,3; Dt 6,3; 26,9). Apareceu gente querendo proibir a profecia de Eldad e Medad, porque “eles eram de fora” da tenda. Às pessoas que ficaram iradas com a profecia de Eldad e Medad, fora da instituição, Moisés bradou: “Oxalá todo o povo fosse profeta e recebesse o Espírito de Javé, Deus solidário e libertador” (Nm 11,29).

Segundo a tradição deuteronômica, na Bíblia, quando o poder do rei de Judá, do Sul, se tornou tirânico sobre as tribos do norte, Deus inspirou profetas que incomodaram os que defendem a unidade. A divisão, ou seja, a separação (cisma) foi defendida como algo inspirado por Deus Javé. Quando o rei Roboão, de Judá, quis lutar para resgatar a unidade e trazer de volta ao seu reino as tribos/comunidades do norte, de acordo com o texto bíblico, a palavra de Deus foi dirigida ao profeta Semei nos seguintes termos: “Fala a Roboão:  volta para casa e não tente resgatar a unidade com Israel. Essa divisão fui eu que fiz” (1 Reis 12, 22- 24). Muitas vezes para superar injustiças é preciso quebrar a aparente unidade que esconde desigualdade e reproduz injustiça. Eis o rumo: não trabalhar com a busca de consenso e de apaziguamento a qualquer preço, mas buscar sempre relações de ética e de justiça, mesmo que para isso precisam reconhecer a legitimidade do dissenso. 

Na Bíblia, muitas vezes, os profetas se opuseram e denunciaram com veemência os sacerdotes do templo que se colocavam como se fossem proprietários de Deus, “representantes de Deus” na terra, o que na prática busca privatizar Deus domesticando-o. Ao denunciar a religião ritual e formalista como sendo mera busca de autoajuda e de segurança humana individual, os profetas tiveram que se posicionar contra muitos aspectos da cultura popular e do senso comum contaminado pela ideologia dominante, que gosta da religião e contra o consenso da unidade formada a partir do poder sacerdotal. 

Certa vez um arcebispo questionou o pessoal do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI) por não estarem atuando em “unidade com a Igreja da Arquidiocese”. Disse ele: “Vocês estão fazendo círculos bíblicos e escolas bíblicas por aí sem minha autorização”. Neste tipo de afirmação está esdrúxula concepção de unidade como se fosse uniformidade, onde um hierarca está em cima e manda em quem está embaixo. Isto é lógica totalmente antiprofética. A unidade como relação de comunhão se constrói e se cultiva a partir e na base de relações humanas e sociais de justiça e ética, o que passa necessariamente por criticar e denunciar o que é injusto. 

Na Bíblia há passagens que mostram vários profetas sendo ameaçados de morte por sacerdotes, como é o caso dos profetas Amós e Jeremias. Os profetas e profetizas proclamaram que a aliança que Deus fez com o povo hebreu no monte Sinai tinha como base que todo povo se tornasse sacerdotal, isso é, mediador do Amor Divino em relação à humanidade e ao universo: “Vós sereis para mim um reino de sacerdotes, uma nação toda santa” (Ex 19,6). Etimologicamente sacerdote é quem tem a missão de revelar e explicitar a presença da luz e da força divina no mundo, ou seja, mostrar a sacralidade da vida e das relações humanas e ecológicas que devem se pautar por ética e justiça. Neste sentido etimológico, sacerdote e profeta/profetisa têm missão semelhantes. Entretanto, quando, historicamente, o sacerdote se torna um funcionário da instituição religiosa e organiza e estrutura as relações humanas com ele (o sacerdote) se colocando no topo de uma pirâmide e lhe autoatribui o poder de definir e determinar o que é pecado ou não, como se comportar, quais são os deveres do povo que está na base da pirâmide, isto significa privatizar o sacerdócio concedendo poder dominação, o que o torna antiprofético. 

Obs.: No próximo texto, o 4º, continuaremos refletindo a partir do Livro de Ezequiel, livro do Mês da Bíblia de 2024. 

25/6/2024

Obs.: As videorreportagens no link, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Ezequiel, que tipo de Profeta e de Sacerdote? E nós? Vem aí o mês da Bíblia 2024. Por frei Gilvander

2 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

3 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética 

4 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

5 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

6 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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