Em meio à decisiva e histórica votação do Marco Temporal, e sob a ameaça de confronto com bolsonaritas, indígenas protagonizaram dias de união e resistência
Entre os dias 22/08 e 11/09/2021 os Jornalistas Livres acompanharam a Primavera Indígena, que reuniu, na Capital Federal, mais de 10 mil indígenas, de mais de 170 povos, que se dividiram em dois eventos distintos: O Acampamento Luta Pela Vida (oficialmente, de 22 a 28/08) e a II Marcha das Mulheres Indígenas (oficialmente, de 07 a 11/09). Na pauta principal dos dois eventos, o ataque sem precedentes aos povos originários, promovido pelo governo Bolsonaro e seus aliados: o PL-490 e a votação, no STF, do Marco Temporal
Apesar do intervalo oficial entre dois eventos, na prática, com os seguidos adiamentos do julgamento do Marco Temporal no STF, os indígenas permaneceram mobilizados por 24 dias seguidos em Brasília, até o dia 11/09. O julgamento não foi concluído, e será retomado nesta quarta-feira (15). Encabeçada pela bancada ruralista, se aprovada a tese do Marco Temporal, somente os territórios indígenas demarcados até 1988 serão reconhecidos.
“Por enfrentarmos muitos vírus, incluindo a política genocida de Bolsonaro, começamos a nossa ‘Primavera Indígena’ que pretende ocupar Brasília de forma constante, em 2021, além de seguirmos nas redes sociais e nos territórios mobilizados”(Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib).
Texto e fotos: Leonardo Milano, para os Jornalistas Livres
A convite do Conselho Indígena Tupinambá do Baixo Tapajós (CITupi-BT), acompanhei, por três dias de viagem por terra, a delegação dos 13 povos que habitam aquela região do Pará, até o local do Acampamento Luta Pela Vida, em Brasília, onde me juntei à equipe de comunicação colaborativa da Apib.
18/08 – Com a força dos encantados
Reunidos na sede do Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns (CITA), cerca de 100 indígenas, representando os 13 povos que habitam o Baixo Tapajós, receberam a força dos encantados, através do Pajé Nato Tupinambá, para a jornada que estava prestes a se iniciar, rumo à Brasília.
A delegação do Baixo Tapajós precisaria mesmo de proteção, porque, para além da longa jornada, cruzaria territórios ocupados por inimigos dos povos originários: ruralistas, garimpeiros e madeireiros, do sul do Pará, passando pelo Mato Grosso e parte de Goiás.
21 e 22/08 – A monumental ocupação do Eixo
Ao sol do meio dia, após três dias de viagem exaustiva, a delegação desembarca ao som do canto dos guerreiros tupinambá, arapium, borari, kumaruara e outros. Os povos do baixo tapajós desfilaram pelo acampamento, que ainda estava se estruturando no estacionamento do Teatro Nacional, próximo à rodoviária do Plano Piloto. A chegada da delegação rapidamente mobilizou as dezenas de jornalistas e documentaristas que já se encontravam no acampamento.
Após a impactante chegada, era hora de montar acampamento, junto a milhares de outros parentes, de diversas regiões do Brasil e de outros países da América Latina. Com impressionante força e organização, a delegação rapidamente levantou uma complexa estrutura de barracas, tendas de cozinha, reuniões e descanso. No acampamento, o dia 21 estava inteiramente reservado à chegada e à organização das delegações, além da montagem da estrutura oficial do evento, que contou com espaços de saúde e testagem para covid-19, refeitório, banheiros, apoio, comunicação, credenciamento, palco, e muitos outros.
Aos olhos das pessoas que passavam , o acampamento parecia um emaranhado de lonas e barracas. No entanto, havia uma organização tremenda, com delimitações físicas e imaginárias, como se fossem diversas aldeias dividindo o mesmo espaço, com regras de convivência e segurança.
O dia 22/08 também foi reservado para a chegada e apresentação das delegações, com músicas, danças e socialização entre os povos. Dia de rever parentes, e fazer novos amigos…
A programação oficial começaria a partir do dia 23/08, e seguiria até o dia 28/08, com direito a marchas e vigílias no STF, nos dias 24 e 25/08, quando o julgamento foi iniciado. Para a frustração geral, os dois dias no STF foram dedicados, pela corte, apenas a argumentações favoráveis e contrárias ao Marco Temporal. A angústia e a tensão tomaram conta dos indígenas nesses dois dias, na Praça dos Três Poderes, que acompanhavam por telão o que se passava dentro da Corte.
Marchas e vigílias no STF
Aras e a explosão de emoção
Diaia 25/08: em uma das explanações mais aguardadas, o Procurador Geral da República, Augusto Aras , inesperadamente, se manifestou contrário ao Marco Temporal, alegando que a tese não se sustenta juridicamente, e que o país pertence aos povos originários.
Exaustos e desgastados pelo calor e clima seco de Brasília, os indígenas protagonizaram o momento mais emocionante do Acampamento Luta Pela Vida: ao belíssimo pôr do sol, uma explosão de choro, gritos, cantos, abraços e renovação das esperanças.
Aras não vota, mas sua fala tem grande importância, pois, como procurador geral da república, sinaliza que o próprio governo não crê na sustentação jurídica do Marco Temporal. No entanto, o alívio na angústia foi temporária.
A corte retomaria o julgamento apenas no dia 08/09, mais de uma semana após o término do Acampamento Luta Pela Vida, e já durante a Marcha das Mulheres Indígenas. Por questões financeiras, logísticas e pessoais, muitas das delegações tiveram que voltar para seus municípios, não podendo se somar as delegações das mulheres indígenas, que chegariam nos próximos dias. No entanto, com a ajuda de apoiadores, e com vakinhas coletivas, cerca de mil indígenas conseguiram resistir em Brasília até a II Marcha das Mulheres Indígenas. A estrutura que havia sido montada no estacionamento do Teatro Nacional, para o Acampamento Luta Pela Vida, foi, ao longo da semana, sendo transportada para o gramado próximo da Funart, onde ocorreria o evento protagonizado pelas mulheres.
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A II Marcha das Mulheres Indígenas
Criada em 2019 para mostrar ao mundo o protagonismo das mulheres indígenas e fortalecer suas lutas, em 2021 a Marcha chega à sua segunda edição, em meio à tensão da votação do Marco Temporal e ao levante golpista do bolsonarismo, que programou uma invasão da Esplanada dos Ministérios na semana do 7 de setembro. Uma horda de fascista, financiada por setores do agronegócio, elevou e muito a tensão durante a Marcha das Mulheres, que teve sua programação alterada para evitar confronto.
Veja a programação oficial da II Marcha das Mulheres Indígenas
Cerca de cinco mil mulheres ocuparam os arredores da Funart, em Brasília. As delegações vindas de todo o Brasil começaram a chegar já no dia 05/09, e a elas se somaram as delegações remanescentes do Acampamento Luta Pela Vida.
Utilizando a maior parte da estrutura do acampamento do mês de agosto, e para além da programação oficial da Marcha, a organização do evento – coordenada por mulheres – mostrou que o protagonismo das mulheres é pilar fundamental da luta dos povos originários.
A marcha pela Esplanada, que estava programada para o dia 08/09, teve que ser adiada para o dia 10/09, com itinerário alterado, para evitar os milhares de bolsonaristas que invadiram a Esplanada na noite do dia 06/09, sob os olhos da conivente polícia militar, que nada fez para impedir a retirada, por tratores, das barreiras de concreto que bloquevam a passagem de veículos. A noite do dia 06 foi tensa, com carros de som entoando falas golpistas, de destituição do Congresso e do STF, além de intervenção militar. Houve uma ameaça de invasão do acampamento das mulheres.
A Invasão Bolsonarista
A apreensão tomou conta de todas e todos. A horda bolsonarista permaneceu na Esplanada do dia 06 ao dia 08/09, sem que a polícia militar oferecesse resistência significativa, exceto em uma tentativa de furar o bloqueio que impedia o acesso ao STF, no dia 07/09.
O que se viu, durante o 07 de setembro em Brasília, foi algo que provavelmente será difícil explicar nos livros de história. Majoritariamente formada por empresários, brancos de classes altas, uma gente cheia de ódio e despolitizada, que nem de longe representa o povo brasileiro.
Na noite anterior, fui reconhecido pelos bolsonarismo, enquanto documentava a invasão da Esplanada. Tive que sair imediatamente do local….
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10/09 – O Dia da Marcha
Por segurança, a organização do evento alterou o percurso da marcha. Mas nem por isso a caminhada das cerca de cinco mil mulheres deixou de ser potente e emocionante. A caminhada se deu até a Praça do Compromisso, onde em 1997 Galdino Pataxó foi covardemente queimado vivo. No local do crime hediondo, foi colocado um monumento em sua homenagem. E foi lá que as milhares de indígenas protagonizaram um dos momentos mais marcantes da Primavera Indígena: o monumento foi cercado, e uma grande oração coletiva foi feita em homenagem a Galdino. Um boneco representando Jair Messias Bolsonaro foi queimado no local onde Galdino foi brutalmente assassinado.
Nesta quarta-feira, o STF retoma o julgamento. Acompanhe ao vivo, a partir das 15h, em nossa página do Facebook.
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