Às vésperas de mais uma eleição presidencial, o entregador antifascista Paulo Lima, conhecido como “Galo” fala de seu “amor, carinho, respeito e gratidão” pela obra deixada pelo ex-presidente Lula em benefício do povo pobre. “Só que eu evoluí, cresci, amadureci. Entendi que tem coisa pra avançar a partir do Lula”, diz ele. E arremata: “O Lula é importante. Superar o Lula é mais importante ainda.”
Galo enche o peito quando se declara um revolucionário. Ele tornou-se famoso pela audácia das ações que promoveu, como a gigantesca passeata de motoboys pela cidade de São Paulo, contra as péssimas condições de trabalho dos aplicativos de entrega, em julho de 2020. Ou o fogaréu na estátua do bandeirante caçador de indígenas Borba Gato, em Santo Amaro, uma forma de expressar o ódio das periferias pelos genocidas, em julho de 2021.
Galo ficou 15 dias preso por causa do incêndio do Borba Gato. Na cadeia, explicou aos outros presos quem foi Malcolm X e sua luta antirracista. Pelo menos um de seus colegas de cela passou a usar o nome do líder negro, como forma de homenageá-lo. Mas também recebeu ensinamentos valiosos para sua luta.
Na entrevista a seguir, esse revolucionário nascido na periferia de São Paulo fala de filosofia, de esperança e de luta. Leia e assista ao vídeo!
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Jornalistas Livres: Basicamente, a ação do Borba Gato diz o que para as crianças, para os moleques, para as pessoas que estão por aí?
Paulo Galo: [Diz que] é possível ser revoltar, mano. Não precisa ficar só guardando isso daí dentro de você. Pode se revoltar, sim. Olha, se revolta sim, mano. Joga na cara dos boys aí, entendeu? Não precisa ficar guardando pra você não. Joga na cara deles aí. É possível [se revoltar], porque parece que não é possível. Eu achava que não era possível nós sermos inteligentes. Eu achava que ser inteligente é coisa pra uma pessoa branca, de jaleco branco, com óculos na cara… inteligente era só um cientista. Cara branco, jaleco branco, um velho branco. Isso era ser inteligente. E aí eu vou na Cooperifa [sarau periférico da zona sul paulistana, animado pelo poeta Sergio Vaz] e vejo uns caras pretos, inteligentes, recitando umas poesias e o pessoal batendo palma. E aí eu digo: pera aí, é possível ser inteligente. É possível! Então você precisa mostrar que é possível. Morou? Se revoltar é possível, se rebelar contra o sistema é possível, ir pra cima é possível. Mano, nós não somos tão fracos como a gente pensa! Nós somos fortes pra caramba. Dá pra ir pra cima, sim!
Jornalistas Livres: Você ficou surpreso com a prisão depois do incêndio do Borba Gato?
Paulo Galo: Eu sabia que ia pra cadeia. Isso aí eu já trocava ideia. Falava: isso aí vai dar merda. Eu vou pra cadeia. Não tem como. Mas tá suave. Até ir pra cadeia também é símbolo. Ir pra cadeia também gera imagem. E eu vou pra cadeia forte e vou sair da cadeia, não importa quantos anos eu fique lá, eu saio forte também do barato. É isso, truta. Nós somos fortes, nós somos poderosos, nós conseguimos. Nós somos corajosos, caralho!
Jornalistas Livres: Vc poderia explicar a simbologia contida no incêndio do Borba Gato?
Paulo Galo: A gente colocou um símbolo no pé de um outro símbolo. Tem um símbolo da burguesia, o Borba Gato, um homem loiro, de olhos azuis, com uma carabina na mão. Aí, uns jovens da periferia foram lá e tacaram fogo. Era um símbolo batendo de frente com outro símbolo. O que o o fogo representa? O ódio que a gente sente. O que o Borba Gato representa? Essa burguesia que está aí. Então nós colocamos o nosso ódio na frente da burguesia ali naquele momento. E foi isso que incomodou tanto. Porque dizem que a gente está querendo apagar a História. A estátua está lá mano. E mesmo aquilo ali, aquela estátua, não conta a História. Aquela estátua homenageia, mano. Entendeu? Eu falo por aí que na Alemanha tem um museu do Holocausto. Seria certo queimar o Museu do Holocausto? Não. Eu queria que tivesse um um museu do genocídio do povo preto e indígena no Brasil. Agora pergunta se o povo alemão queria uma estátua de Hitler no meio da praça lá da Alemanha. Ele não quer. O judeu não quer aquele barato ali. Assim como nós também não queremos um Borba Gato.
O [Ailton] Krenak fala assim: em São Paulo tem um bairro chamado Moema. As ruas desse bairro chamam-se Nhambiquara, Guaramomis. E aí você tem a avenida Bandeirantes cortando esse bairro no meio. Parece de propósito. Parece, não. É de propósito! É pra deixar a gente… “Ó, acabou a escravidão daquele jeito que era, vocês avançaram mas não avançaram tanto assim. Os donos do bagulho ainda somos nós. Basicamente a mensagem é essa. Olha pro Borba Gato aí, está vendo?, treze metros de altura. O dono somos nós.” Bacana, legal. Pois bem, a gente quer uma estátua de Zumbi dos Palmares na Paulista, também com 13 metros de altura. No lugar da carabina, eu quero uma lança. Se aparecesse o Zumbi pisando na cabeça do Borba Gato, seria mais da hora. Você está ligado? Você acha que o povo preto, na hora que passasse na Paulista e visse esse Zumbi de 13 metros de altura com uma lança na mão, imponente, você acha que o povo preto não ia falar “Nós somos donos dessa cidade aqui também.” Mas não. A gente passa debaixo de uma estátua de 13 metros de altura do Borba Gato e a gente passa assim [de cabeça baixa].
Jornalistas Livres: Você fala muito de símbolos. Por quê?
Paulo Galo: Tem uma frase que é boa e que fala assim: o imperialismo não vai mandar os tanques se ele puder mandar a Beyoncé. Por que ele vai mandar os tanques e invadir uma cidade, gerando talvez a imagem de uma criança atacando pedra no tanque? Essa imagem de uma criança atacando uma pedra no tanque vai rodar o mundo como uma imagem de resistência do povo brasileiro. Muito melhor é mandar a Beyoncé. A criança vai dançar com a Beyoncé e no fim você terá o mesmo efeito de uma invasão. O mesmo efeito de dominação, de quebra de cultura, de troca da sua cultura pela minha. “Nós somos muito mais bonitos que vocês. Comprem da gente, porque o que vocês fazem não tem valor.” A coisa é simbólica, mano.
Como é que o Bolsonaro ganhou? Não foi a mídia trabalhando o imaginário da população? O cara estava ali no SuperPop falando besteira. Daqui a pouco estava no CQC falando besteira. Daqui a pouco o cara estava em outro programa. Daqui a pouco o cara estava no Pânico na TV. Daqui a pouco… pá! Presidente do Brasil! A guerra é simbólica, mano. Eles trabalham com a ideia assim faz tempo. Eles colocam o preto com cara de mau na TV, entendeu? Para colocar medo nas pessoas. Eles falam que na África tem doença. Porque se você parar pra pensar, pega um país da África, como a Nigéria. Tem cachoeira, tem mata, tudo bonito… A França tem o quê? Uma estátua de ferro, mano [a torre Eiffel]. Não tem nada na França. Uma estátua de ferro. E o pessoal prefere ir pra França do que ir pra Nigéria. Por quê? Porque a mídia fica trabalhando a imagem de que na Nigéria tem doença, que na África tem guerra civil, você fica trabalhando na parte ruim. Então, vai gastar seu dinheiro na França, amigão. Não vai gastar o seu dinheiro lá na Nigéria ou aqui. O Brasil tem dengue, sabe? Então a coisa é simbólica. Eles não trabalham mais com essa coisa direta, eles não trabalham mais com essa coisa de enviar um tanque e acabar com aquilo ali. Não! Eles trabalham com a ideia simbólica. PT: o que eles fizeram com o PT? Entraram e mataram todo mundo? Não. Corrupção, corrupção, corrupção. Eu lembro que, no Jornal Nacional, o Lula aparecia sem áudio. Passava uma imagem do Lula e a narrativa era do Jornal Nacional, a narrativa era do William Bonner, falando sobre a imagem do Lula. Eles estão trabalhando com a imagem, com a simbologia da coisa. Do nada, você teve o Brasil inteiro gritando “PT corrupto”. Parece que o PT inventou a corrupção. Aí os caras conseguem tirar da imagem do PT, pra passar para a esquerda toda: “A esquerda é corrupta”. A esquerda é humanitária, e eles passam que a esquerda gosta de bandido, passa a mão na cabeça de ladrão. Não, mano. A esquerda está preocupada com o bagulho da humanidade das pessoas. Os caras pegam o jovem que passou a vida inteira na pobreza e jogam ele numa cadeia. Essa é a solução? “Adota e leva pra casa!” Eles trabalham com a coisa da simbologia e a simbologia é um barato importante. A gente também tem que tomar conta dessa coisa. Pegar e trabalhar com a imagem também. Tem que ter a contraimagem. Eu acredito que para vencer o capitalismo, mano, não é só uma coisa exterior por exemplo. O capitalismo é uma coisa interior. Você imagina: tem uma moto que chama Hornet. Na periferia, o pessoal gosta dessa moto. Já gostou mais, agora são outras motos que eles gostam. Mas todo mundo queria essa Hornet. Por que o cara queria essa Hornet? Porque ele queria consumir a Hornet? Não! O cara quer existir, mano! Porque ele vê que o cara que comprou a Hornet, ninguém sabia o nome dele, e agora que ele comprou, o pessoal fala “Olha o João da Hornet”. O consumo vira o sobrenome do cara, o cara passa a existir através do consumo. Como é que você vai vencer, se isso se está dentro do cara? O cara não está apegado ao consumo, o cara está apegado à existência. Ele é o João da Hornet. Ele não está apegado a Hornet. Ele está apegado ao João. Ele está apegado ao João, porque ele não era ninguém e agora ele é o João da Hornet.
Jornalistas Livres: Como você explica a ascensão do fascismo no Brasil?
Paulo Galo: O fascismo está numa jaula e quem tem a chave dessa jaula é a burguesia, mano. Aí, a burguesia viu a potência dos governo de esquerda no Brasil e ela abriu a jaula. Falou, vai lá, devora esses caras, acaba com a vida desses caras. Por isso que o fascismo se propaga tão rápido assim. Porque ele tem a solução fácil. Tem a solução na ponta da língua. E a esquerda, ela tem uma ética que não permite dar essa solução, porque a esquerda sabe que a solução não é assim. Que a solução não é amanhã. Que o Brasil não vai se consertar amanhã. Que a fome não vai acabar amanhã. Que racismo não vai acabar amanhã. Que machismo não vai acabar amanhã. Que toda essa sua estrutura colonial e imperialista não vai acabar amanhã. A direita não, mano. A direita fala: eu tenho a solução pra vocês. Sabe o que que é? “Bandido bom é bandido morto”. Aí o povo fala “bandido bom é bandido morto”. O problema da segurança não é esse. O problema da segurança não está no bandido. Está no que fabrica o bandido, está antes de o bandido acontecer. O Dugueto [rapper paulista] fala assim: “Você quer punir o crime ou você quer evitar o crime?” Tem que evitar o crime. Depois que o crime aconteceu, mano, quer punir? Nós vivemos nessa cultura punitivista. Nós temos que ter uma cultura que evite isso daí. Como é que nós fazemos pra evitar isso aí? É bem melhor.
Você imagina um cara que nasceu nos anos 2.000. O cara já nasceu num governo progressista, de esquerda. E aí ele pegou a mídia querendo destruir aquele governo ali. Querendo destruir aquelas ideias. Eu nasci em 1989. Eu peguei uma fase do meu pai reclamando do salário mínimo, que era de R$ 150, R$ 300. Como é que pode um salário mínimo ser igual a R$ 300? Aí eu peguei uma fase desse governo mais progressivo chegando e deixando um salário mínimo em R$ 1.000. Eu peguei uma fase em que as pessoas falavam “Nos Estados Unidos é que é bom, porque lá o salário mínimo é mil dólares”. Aí o governo aqui no Brasil conseguiu chegar a um salário mínimo de R$ 1.000. Ou seja: tem quem viu os pais comemorar: “Caralho, o operário virou presidente. Puta aê! Legal!” E tem quem não viu isso, mano.
Jornalistas Livres: O que você acha da volta do PT à Presidência da República?
Paulo Galo: Eu não acho que o povo queria voltar para o que o PT fez. O povo queria avançar a partir dali, mano. E é foda ter que voltar pra lá. Isso é foda. Nós queríamos avançar a partir daqueles avanços. Teve uns avanços de 2002 até 2014… Porra, teve vários avanços. Nós queríamos continuar avançando a partir dali. Nós vamos ter que voltar para 1994, meu. E outra coisa é que o povo não tem nem noção do que ele perdeu, mano. Falar de direito trabalhista pro povo, parece manga com leite. Falar de carteira de trabalho, parece manga com leite. Parece que não pode chegar perto que mata. “Esse negócio é ruim para o país, então é ruim pra mim”. É igual na casa grande, sabe? É ruim pro senhorzinho, é ruim pra nós. Tinha essa cultura lá antigamente. Se a fazenda não prosperar, nós não prosperamos. Se o Brasil não prosperar, nós trabalhadores, não prosperamos também. Não, mano! Se os trabalhadores não prosperarem, aí que o Brasil não prospera. Eh o contrário. Somos nós, a classe trabalhadora do país, que tem que prosperar. Para o país prosperar.
Na luta popular, nós temos que continuar avançando. Um governo de esquerda que voltar para o poder, ele tem que entender que não pode brecar a luta popular como fizeram os governos de esquerda do passado. Então vamos lá, avança. É isso de consumismo de novo? Vá lá. Só não atrasa a luta popular. A luta popular tem que continuar avançando.
O Lula é importante. Superar o Lula é mais importante ainda. Eu tenho amor pelo Lula. Eu tenho amor, tenho carinho, respeito, gratidão, certo? Só que eu evoluí, cresci, amadureci. Entendi que tem coisa pra avançar a partir do Lula. E dizer, ó, beleza, até aqui, legal, isso aqui foi importante pra caramba, mas precisamos continuar avançando a partir daqui.
Jornalistas Livres: Como era a vida dentro da cadeia??
Paulo Galo: Eu nunca fui ouvido igual eu fui ouvido na cadeia. Voce fala com um e junta 40. Junta gente pra caramba. As pessoas querem ouvir a história, querem ouvir os detalhes. Eu fui muçulmano e aí quando eu cheguei na minha cela tinha um libanês. E eu comecei a orar com ele. Os caras falaram assim: “Caramba, meu, você fala árabe?” Eu falei que não. Que só sei as orações. Daí eles quiseram saber por que eu virei muçulmano. Eu respondi que era por causa do Malcolm X. “Quem é o Malcolm X?” Aí você tinha de contar toda a história do Malcolm X. E na cadeia não tem relógio, na cadeia não tem celular, na cadeia não tem distração. Então você tem uma história pra contar e essa história é boa, vixe, as pessoas escutam. Daí, você fala assim: “O Malcolm X foi um cara que foi preso, era ladrão. E aí virou revolucionário na cadeia. Como eu tive acesso à história do cara, que era muçulmano, eu virei muçulmano também”. Resultado: teve cara na cadeia que mudou o nome para Malcolm X. E na cadeia você está conversando com a cadeia inteira. Imagina que você está numa cela em que cabem doze sendo dividida por quarenta pessoas. Não dá nem pra cochichar. Então, se você está trocando uma ideia com um aqui, você tem pelo menos mais uns quatro ouvindo. E daqui a pouco você tem mais outro. Se o papo for bom mesmo, a cela inteira está te ouvindo. Aí depois a cela abre e vai todo mundo pro pátio e os caras falam pra outra cela.
Quando eu cheguei na cadeia, os demais presos não acreditavam no que eu tinha feito. Você imagina, ninguém com televisão, ninguém sabia o que que estava acontecendo. Quando eu contei, acharam um absurdo. “Mas por que você queimou a estátua?” Aí eu respondi, porque ele era um “Jack”, um estuprador. “Ah, então tá bom. Estuprador é isso mesmo”, os caras disseram.
Mas todos ficavam meio assim. Eles só começaram a botar uma fé nas coisa que eu falava quando o [Eduardo] Suplicy mandou o livro [dele sobre a Renda Básica] pra mim. E aí o carcereiro falou assim: “Aê, o seu paizinho mandou um livro pra você.” Quem?, eu perguntei. “O Eduardo Suplicy” e me deu o livro. O Suplicy escreveu um texto de dedicatória e assinou. Aí os caras pegaram o livro e saíram mostrando de cela em cela. “O que o cara tá falando é verdade mesmo. Ele é conhecido mesmo.”
O cara que era o mais sintonia da cadeia, que era o que mais controlava as ideias da cadeia, que eu chamo de “Rosa Luxemburgo” mandou me chamar. O mensageiro falou assim: “O ‘Rosa’ está chamando você lá no meio do pátio para trocar umas ideias.” Logo veio o receio: “Ih, Galo, o ‘Rosa’ querer trocar uma ideia com você no meio do pátio é B.O. sério, pra todo mundo ouvir”.
Eu falei: “Pode ser que eu esteja falando muito, né? Estou trocando muita ideia com as pessoas e os caras já têm a organização deles aqui. Talvez os caras vão falar: “Ó, segura a onda aí, porque aqui o bagulho já tem nossa organização; os presos estão muito na sua e não está legal”. Eu também não queria causar e fui lá. O ‘Rosa’ falou assim: “E aí, Galo, onde é que você quer chegar com essas ideias aí? O Suplicy te mandou um livro… Você reparou que é um dos poucos aqui que tem advogado bom? Que todo mundo aqui só tem advogado do estado? Você acha que nós não estamos vendo? Aonde você quer chegar com essas ideias, parça? Essas ideias de Revolução, que você tá falando…” Eu respondi: “Eu quero chegar nisso mesmo: uma revolução. Quero construir um processo revolucionário”. “E como é que é esse bagulho de revolução?”, perguntou o sintonia. “Olha, revolução é isso, mano. É uma troca de sistema, truta”. E isso eu falando com ele aqui no pátio e os outros presos, que respeitavam esse cara, em volta, olhando e observando as ideias. “Uma troca de sistema é nós pegarmos os trabalhadores e colocarmos lá em cima, entendeu? Fazer um triângulo virar um círculo. Não tem mais patrão, não tem mais gente rica”.
Aí ele falou assim: “Então só vai ter gente pobre?” Eu falei: “Não, irmão, se você não tem o conceito de rico, como é que você vai ter o conceito de pobre? Entendeu? Não tem essa. Se não existe rico, não existe pobre. Quem fabrica o pobre é o rico. Não tem de ter rico. Tem que ter o povo se ajudando, se completando”. Aí eu fui querer explicar pro ‘Rosa Luxemburgo’ a diferença de revolução e reforma. “Olha, irmão, você tem de entender que existe revolução e existe reforma. Eu não sou um cara que quero fazer uma reforma. Eu sou um cara que quero fazer uma revolução”. Me explica, pediu o ‘Rosa’… Eu falei: “Se eu sair daqui e me candidatar, eu posso fazer uma reforma. Fazer um projeto de lei que vai trazer chuveiro quente pras cadeias. Não vai poder mais tomar banho gelado na cadeia. E com isso aí nós vamos evitar a tuberculose, por exemplo”. “Pô isso aí não é bom?”, disse o ‘Rosa’. “Isso aí é ótimo, mano. Só que não sou um cara que quer melhorar a cadeia. Eu sou um cara que quer fazer a cadeia deixar de existir. Uma reforma vai melhorar isso daqui. Uma revolução vai fazer isso aqui deixar de existir. Você vai poder tomar seu banho na sua casa. Com seu filho, com a sua esposa, com a sua família, mano. Entendeu? Isso aqui não era pra existir, truta. Isso aqui é um projeto maléfico. Só existe ladrão porque o banco quer. O ladrão precisa colocar medo na sociedade pra sociedade colocar o dinheiro dela no banco. Então o banco precisa fabricar o ladrão, o banco precisa fabricar a pobreza. Para a pobreza fabricar o ladrão. Isso tudo é um projeto, mano. Isso aqui é fábrica de bicho.”
Daí, o ‘Rosa’ perguntou: “Se eu te ajudar com essa revolução aí, nós conseguimos fazer ela amanhã?” Eu falei não, lógico que não. Revolução é um processo. Ele disse: “Bom, da hora. Que bom que você falou isso: que não tem como fazer um bagulho desse amanhã, né truta, Então, não dá pra você trazer um chuveiro quente aqui amanhã e fazer uma revolução depois de amanhã?” Aí eu parei no tempo… “É parça, porque às vezes é esse chuveiro quente que vai conquistar esses manos aqui pra revolução”. Aí os manos que estavam ao redor falaram: “Taí, o Galo é inteligente, mas o mano é mais, caralho. O Rosa é muito mais inteligente! Tá vendo, Galo, escuta o Rosa”. Aí eu falei: “de fato, o mano é inteligente mesmo. Tá falando uma real. Reforma e revolução talvez não sejam duas coisas diferentes. Talvez tenha que trabalhar em conjunto. Talvez existam certas reformas que você pode fazer e que podem ajudar você nessa revolução”. E o ‘Rosa’ completou: “Às vezes, você traz um chuveiro quente pros manos aqui, e eles vão ficar na sua. Aí é o espaço que você tem pra dialogar com eles e conseguir levar pra uma coisa melhor. Mas você precisa provar que isso é bom, mano, que as suas ideias são boas. Porque senão é só conversa fiada, Galo. Senão, você tá falando de revolução, que a vida vai ficar melhor, mas e aí? O que que você trouxe mesmo pra vida ficar melhor? Você não trouxe nada, irmão. Alguma coisa que você tem que fazer pros caras experimentarem e falarem assim: Vamos na do Galo, porque o Galo está falando sério”.
Jornalistas Livres: Você encontrou ódio na cadeia?
Paulo Galo: Se eu encontrei ódio na cadeia? Lógico. Cadeia é puro ódio, todo mundo cheio de ódio, com raiva, à beira da loucura. Cadeia: você está à beira da loucura. Eu vi gente ficando doida na minha frente. Mano que chegou hoje e quatro dias depois estava batendo a cabeça na parede. Porque a ficha não cai no primeiro dia. A ficha vai caindo… E quando o bagulho cai, você começa a ver o cara chorando. Começa a ver o cara mal. Puta, agora fodeu mesmo. Aí você começa a ver o cara meio chapando.
Esse ódio é o ódio que destroi a gente. Faz a gente ficar esquizofrênico, alcoólatra, dependente químico, faz as cracolândias estarem lotadas. Está todo mundo cheio de ódio ali, se autodestruindo. Esse ódio não é nosso mano. Nós somos puro amor, mano. Nós gostamos de de dançar, de comer, de inventar comida, nós inventamos a feijoada, inventamos o baião de dois, nós inventamos a música. Nós somos puro amor, meu. Nós inventamos história. Vira folclore, nós inventamos as coisas mais bonita através do amor que nós temos aqui. Esse ódio não é nosso, mano. Esse ódio vem embrulhado numa viatura, no esgoto a céu aberto, na pobreza, na cadeia. Esse ódio não é nosso. Eu acho que a gente tem que organizar esse ódio e devolver esse ódio pra quem é dono dele, entendeu? Porque isso está destruindo a gente. Esse ódio a gente tem que devolver pro lugar certo e o lugar certo dele é com a burguesia. Entregar na mão dela e falar: isso aí é seu, não é nosso, não. Você se vira aí. Estou indo dançar, tô indo pro samba. Se vira. É com você esse problema aí.
Jornalistas Livres: Você é otimista em relação ao futuro do Brasil?
Paulo Galo: Eu não tenho esse sentimento de que nós estamos perdendo. Tenho o sentimento de que nós estamos ganhando. Por mais que a gente esteja aos trinta e cinco minutos do segundo tempo e o placar marque quatro a zero pros caras. Eu não gosto do sentimento derrotista. Eu gosto do sentimento de que a gente é foda no bagulho. É igual o cara que era escravo. Se ele pensasse assim: tamos fodidos, mano, não tem para onde ir, se ele pensasse assim, Palmares nunca tinha existido. Teve que ter um que fugiu, encontrou a Serra da Barriga [onde ficava o Quilombo dos Palmares] , e ele ainda teve que ter coragem para voltar pra trás pra buscar os caras que ficaram. Porque ele podia ficar lá onde ele estava de boa. “O que, mano, eu já saí do inferno… vou voltar pra lá?” Esse cara tem que ser o corajoso o dobro pra ele voltar lá atrás e trazer os caras para Palmares. É o dilema da caverna do Platão. O cara sai, enxerga o mundo e tem de voltar lá na caverna de novo e falar que o mundo não é a sombra. O mundo é essa coisa bonita. “Você precisa conhecer Palmares”, correndo o risco de os caras na caverna matarem ele. Acharem que ele está louco. “Então quer dizer que tem um lugar que tem liberdade? Onde você pode comer o que você planta? Onde você pode viver de boa? Onde ninguém estupra a tua família? Onde ninguém te estupra? Ninguém te maltrata? É isso? Pára, mano. Está chapando. Está louco. Ficou muito tempo no mato. Chapou”. E o cara falando: “Mano, me segue. Vou te mostrar. É verdade isso”. É o dilema da caverna do Platão. Então, acho que nós temos que nos manter firmes. Eu já descobri esse segredo e eu ando com pessoas que ainda não descobriram. Eu fico voltando pra caverna e falando: “Mano, se nós não tivéssemos patrão…” Mas como assim, Galo? E eu respondendo: “Não precisa ter patrão. Existe um mundo sem patrão muito melhor que esse mundo aqui. Aí os caras falam assim: “Se não tem patrão não tem trabalho”. Nãããão, você tá enganado! Se não tem trabalho é que não tem patrão. A força de trabalho não precisa do patrão, o patrão é que precisa da força de trabalho e aí você fica lá, no dilema da caverna de Platão.
2 respostas
Esse cara diz muita coisa certa, a playboyzada da zona sul não tá preocupada com o preto morrendo nas favelas, com o pobre passando fome, mas tá preocupada com a vidraça de banco na Faria Lima e a estatua do Borba Gato no Brooklin.
Finalmente um revolucionário de raiz. Emocionante. Valeu