Os seis recados que saíram das urnas nessas eleições

Por RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de História na Universidade Federal da Bahia

            Depois da divulgação dos resultados oficiais da eleição, tem início uma nova fase da disputa. Vencedores e perdedores começam a interpretar a realidade que foi representada pelo voto. 

Autocrítica, depressão coletiva, cantos de vitória muitas vezes exagerados, lavagem pública de roupa suja. Estamos vendo de tudo, à direita e à esquerda. Meu objetivo neste texto é destacar aqueles que me parecem ser os seis principais recados que os eleitores dos mais de 5.500 municípios brasileiros deram à classe política.

1°) Depois de ter sido praticamente varrido do mapa político do país em dois ciclos eleitorais (de 2016 a 2022), o centro político foi efetivamente reconstruído. O arquiteto da reconstrução tem nome e sobrenome: Gilberto Kassab, o principal estrategista em ação no tabuleiro do jogo político brasileiro. Kassab está apostando no cansaço da sociedade em relação à constante agitação ideológica que há anos movimenta as disputas políticas no país. A intuição me parece correta. Entre todas as capitais, somente Cuiabá e, principalmente, Fortaleza, espelharam a polarização que pautou as eleições presidenciais de 2022. Nas outras capitais e nas cidades de pequeno e médio porte, a disputa esteve mais pautada em questões locais, cotidianas, do que exatamente em critérios ideológicos, apesar de a rejeição a Maria do Rosário, em Porto Alegre, e a Guilherme Boulos, em São Paulo, não ter outra explicação a não ser o veto ideológico.

2°) As contundentes derrotas de Rosário e Boulos reforçam a percepção de que, nesta quadra histórica, as portas do poder Executivo parecem fechadas às lideranças muito identificadas com partidos políticos e movimentos sociais de esquerda, com a exceção de Lula, é claro. Penso que os nomes mais emblemáticos da esquerda deveriam se empenhar nas disputas legislativas, enquanto nas corridas pelo poder Executivo o campo progressista precisará caminhar um tantinho para o centro, e aqui têm destaque as figuras de João Campos e Eduardo Paes, que estão entre os principais vencedores destas eleições. Aquilo que Campos e Paes fizeram, respectivamente, no Recife e no Rio de Janeiro está na escala do impressionante e deveria ser cuidadosamente estudado.

3°) A “esquerda puro sangue” deveria se esforçar em apresentar um projeto disruptivo para a sociedade que consiga rivalizar com a ruptura proposta pela extrema direita, fundada no signo do combate à corrupção. O horizonte disruptivo hoje apresentado pela esquerda está baseado em performances escatológicas no campo do comportamento, o que acaba sendo um suicídio político pois confronta a moralidade hegemônica na sociedade. A radicalização deveria ser performarda em temas de interesse coletivo, como jornada de trabalho 4 X 3, salário-mínimo de 4.000 reais, sem tributação, transporte público gratuito, como vem fazendo o vereador eleito Rick Azevedo, o mais votado do PSOL no Rio de Janeiro. Basear o discurso político nas teses identitárias só interessa à extrema direita, cujo identitarismo é socialmente dominante.

4°) A quantidade enorme de prefeitos reeleitos (80%) é explicada pelo oceano de dinheiro que foi derramado nos municípios através das emendas parlamentares. Instaura-se, assim, um ciclo que se retroalimenta: os parlamentares investem recursos para eleger seus aliados nos municípios e dois anos mais tarde esses aliados retribuem o favor, ajudando nas eleições legislativas. Em 2026, o resultado das eleições municipais, portanto, tende a interferir mais nas eleições legislativas do que propriamente nas eleições presidenciais. Durante a Primeira República, vimos a “política dos governadores”, com protagonismos dos executivos estaduais. Depois da redemocratização, vimos o “presidencialismo de coalizão”, com o Executivo nacional dando as cartas do jogo político. Agora, estamos vendo o “parlamentarismo orçamentário paroquial”, com o Congresso Nacional sendo o mais forte entre os poderes da República. A Constituição de 1988 não regula mais o contrato social e político brasileiro.

5°) No campo da direita radical, importantes movimentações podem ser observadas. Nem de longe, Jair Bolsonaro se mostrou o trunfo eleitoral que prometia ser. Os bolsonaristas estão comemorando os quase 20 milhões de votos que o PL conseguiu, mas cabe questionar qual o tamanho desse eleitorado é efetivamente ideológico e qual parte foi conquistada pela máquina municipal, tão influente nas cidades de pequeno e médio porte. A resposta para o questionamento está sendo disputada dentro do PL, onde as relações entre Waldemar da Costa Neto e Jair Bolsonaro estão longe de serem harmônicas. Como se não bastassem os problemas internos ao seu partido, o ex-presidente viu sua autoridade ser desafiada nas eleições de São Paulo por dois aspirantes a herdeiros. Primeiro, Pablo Marçal tomou para si a semântica da ruptura, que cada vez mais colará menos em Jair Bolsonaro, conforme ele vai sendo identificado com as forças políticas tradicionais. Em seguida, Tarcísio de Freitas desobedeceu a orientação do suposto líder e manteve seu empenho na defesa da candidatura de Ricardo Nunes, o que mostrou ser uma aposta bem-sucedida. Bolsonaro sequer estava no palanque da vitória de Ricardo Nunes.

6) Já o presidente Lula arcou com o ônus da derrota de Boulos em São Paulo. Por mais que a esquerda tente dourar a pílula, esse revés foi impactante, quase humilhante. Com 58 milhões de reais investidos, Boulos manteve-se no mesmo patamar de 2020. Não conseguiu avançar nada, e ainda precisou lidar com dois episódios, no mínimo, desconfortáveis: a linguagem neutra no hino nacional e a “entrevista de emprego” com Pablo Marçal. Os eventos já estão registrados no anedotário político nacional e, certamente, provocarão desgaste à esquerda em geral e a Boulos em particular durante algum tempo. Para o governo, fica o desafio de aumentar sua margem de aprovação ao longo dos próximos dois anos, para que seja possível chegar em 2026 com alguma segurança.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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