Por: Dinha | Ilustração: Sandrinha Alberti
“Só para constar, então, que esse café já pede um chá de acalmar os ânimos, eu vi muita gente dentro e fora da família morrer assassinada. Eu sofri abusos sexuais em diversas ocasiões da minha infância. Como toda pobre favelada eu passei muita fome e não, não perdi a fé na nossa humanidade. E eu tenho receita pra isso.”
Gente, Gente, GENTE! Nos últimos tempos o que mais eu ouço é que o ser humano anda perdido e que os bichos sim é que são bons de parceria; que fulano de tal é anticristo e a própria reencarnação do mal. Pic filme de terror dos streamings da vida.
Eu quase sempre ouço calada. Não sou o tipo de pessoa que gasta palavras com quem não se interessa em ouvir. Em geral eu engulo calada a descrença generalizada e resguardo meus pensamentos. Quase sempre.
Hoje quero fazer diferente. Quero dizer o que penso de uma vez só. Assim quem vier tomar café comigo já vai entendendo o zumbido da minha muriçoca. Então, bora lá!
Sim. Eu acredito no ser humano. Acredito que somos uma espécie incrível, cuja essência, quando a atingimos, mantém a insatisfação que nos impulsiona adiante sem, contudo, de-predar o planeta e os outros seres com os quais convivemos.
E não, mano, mana, não creio que bichos e plantas sejam melhores do que pessoas. Quem diz isso, quase sempre, ou não desenvolveu muito bem sua sociabilidade (traço essencialmente humano), ou prefere seres que não falem – e assim não problematizam as relações.
Quem aqui anda tendo DR com seu comigo-ninguém-pode do quintal? Sua samambaia, por acaso, reclama da sua falta de carinho, quando você chega cansada e só quer ir dormir o quanto antes? Seu cachorro te abandona porque você o trata sem respeito? Sua gatinha vai embora quando percebe o relacionamento tóxico ou a relação utilitária que você tem com ela? (Se bem que, pensando melhor, no caso de felinos isso até que é provável: os gatinhos vazam quando seu humano, sua humana, os maltrata).
Em compensação, nenhum deles vai reclamar de trabalho escravo, quando você cobrar a segurança que o seu cão de guarda e sua mudinha de arruda, implicitamente, prometeram, ou quando não for mais preciso contratar o controle de pragas, porque sua gata não tem medo de baratas ou ratos. Ela os enfrenta, os elimina e ainda faz isso de graça!
Pensando assim, é mais fácil amar os poodles, os vira-latas caramelo, o peixe mudo do aquário, a gatinha ronronante e esperta e até a amoreira que te oferece frutos doces e folhas medicinais, né não?
Difícil mesmo é amar nossos, nossas, semelhantes. Difícil é amar esse povo que dá trabalho, reclama, briga e, sim, faz coisas que até as deusas duvidam – para o bem e também pro mal, liga?
Agora, olha pra mim: eu tenho muitos parentes que morreram assassinados – quem mora na favela sabe bem o que é isso -, mas quando morreu o primeiro, um primo com quem eu trocava cartas toda semana, enquanto ele esteve no corró, quando mataram ele, eu não quis partir pra vingança. E não foi porque sou medrosa.
Também não foi porque eu seja algum tipo de Madre Teresa de Calcutá… você sabe… também quero esganar alguém de vez em quando…
Mas quando o Sandro morreu eu já sabia que a violência era um ciclo interminável e que era preciso romper esse enredo de “Abril despedaçado”, pois era como se na quebrada maio fosse dezembro sempre. Porque nunca chegava, cê entende?
Então quando ele morreu e me contaram que ele partiu calado, por medo de que, caso gritasse, colocaria a família em risco…Eu senti a angústia dele e a raiva dos seus algozes.
E depois, quando soube que, pouco tempo depois, também seus assassinos já estavam todos mortos. Quando aconteceram essas coisas, meu coração foi se partindo em pedaços cada vez menores e eu senti com todos eles as torturas e as sentenças de morte.
E me recusei a jurar vingança.
E não comemorei a morte de ninguém, pois quem matou quem matou o Sandro fez um serviço incompleto: não trouxe ninguém de volta e, de lambuja, botou outras mães pra chorar.
E porque merda eu tô gastando o tempo de vocês com essa história?
É porque o primeiro argumento de quem não tem fé na humanidade é dizer: você fala assim porque nunca aconteceu contigo.
Só para constar, então, que esse café já pede um chá de acalmar os ânimos, eu vi muita gente dentro e fora da família morrer assassinada. Eu sofri abusos sexuais em diversas ocasiões da minha infância. Como toda pobre favelada eu passei muita fome e não, não perdi a fé na nossa humanidade.
E eu tenho receita pra isso.
Pra ser honesta, a receita mesmo é do Du, meu amigo, pai das minhas meninas. Ele costuma dizer: olha nos olhos da pessoa e imagina ela sendo ainda bebê.
Olha nos olhos da criança que chorou por um pouco de colo e fez todo mundo sorrir quando aprendeu a dançar.
Olha bem nesses olhos e percorre o caminho que a levou até ali.
Faz isso e me diz outra vez que o ser humano não presta.
Porque, se é assim, bora matar as crianças antes que elas virem sociopatas, ou a encarnação do próprio mal…
Porque o que não presta é essa vida de angústia e de exploração. Essa vida que dá fome de justiça, de alegria, e nos serve todo dia uma sopa cheia de corações humanos bem partidinhos com pimenta malagueta e um kilo de sal.
O que não presta são os ricos que controlam os xaropes no poder, as sinistras marionetes, os cães farejadores de pobres e um milhão de canais de TV.
Então olha nos olhos do otário, o mais odioso do mundo, e tenta enxergar o bebê.
Depois me diz se o imbecil que a gente até sonha em eliminar da face da Terra é a causa ou é o fruto do capitalismo, do machismo, do racismo e do proibicionismo.
Daí vem aqui e me diz: a humanidade tá perdida ou a gente é que tá perdendo ela?
É que existe uma coisa, liga? Uma coisa que não me deixa desacreditar no Ser.
Eu suspeito que tem a ver com o pensamento que a um só tempo é feminista, comunista, anti cárcere, antiproibicionista e cristão.
Quando tudo isso é posto no caldeirão da bruxa e compartilhado entre nossos irmãos e irmãs, nossos olhos ganham essa capacidade de ver.
Então, olha nos olhos e enxerga o bebê.
Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros.
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