O triunfo da vontade, e a derrota do Estado de Direito.

Ilustração Joana Brasileiro

Por Luciano Morais, violonista, pesquisador e professor.

 

A pessoa que pensa que ser artista é exercer a absoluta liberdade, e que liberdade é exercer a absoluta vontade, está completamente equivocada. Basta que exerçamos a “liberdade” de “querer fazer” um retrato de uma pessoa para entender que, em arte, o querer não basta. É preciso técnica, prática orientada, habilidade aperfeiçoada, referência, conhecimento e estudo. Todas as artes têm algo de liberdade e de responsabilidade com o material. Por isso há aulas de arte. Um cantor não pode cantar em qualquer tonalidade. Um violonista não pode tocar o que quiser – ele tem que praticar a técnica para fazer o que quer. A mistura de vontade e técnica é o que chamamos de arte.

Será que o direito é uma arte? Não há uma vontade, um interesse, uma técnica? Não há uma habilidade envolvida no ato de interpretar fatos com base em um material – as leis e a constituição?

Se por “arte” entendermos essa ação complexa que reúne tudo o que pode ser exercido pelo cérebro – da vontade à coerção auto imposta pelo conhecimento da técnica – talvez a resposta seja: “Sim, exercer o direito é uma arte”. Se por “arte” entendemos essa ação desconexa, da mera vontade vaidosa que olha no espelho distorcido da auto-bajulação e se vê bonito, mesmo sem que tenha havido o mínimo empenho de aprendizado técnico… então a resposta tem que ser “não”.

É que o direito tem o poder de destruir e salvar vidas. É nos debates sobre justiça que se decide se uma pessoa pode ter seu direito à liberdade – um direito básico inalienável – garantido ou cerceado. É no debate sobre o direito que se discute a possibilidade de uma pessoa desenvolver seu trabalho ou mofar na cadeia, manifestar sua opinião ou pagar indenização por calúnia; e onde há a pena capital, é no debate sobre justiça que se decide quem vive e quem morre.

Se há uma linguagem na arte, há também no direito algo a que se tenha que reportar. Não basta a absoluta liberdade de proferir uma sentença e condenar. Não é suficiente, como fizeram os desembargadores do TRF4, dizer que as provas “são robustas”. É preciso demonstrar. Não é suficiente, para um artista, que ele mesmo afirme que seu desenho é bonito. “Tá igualzinho!”, exclama a criança ao pai quando faz suas lindas garatujas. Adulto, tem ele o direito de ter sua garatuja exposta na Pinacoteca de São Paulo? É suficiente, para um juiz, dizer que o crime de lavagem de dinheiro é difícil de provar mesmo, e a ausência de prova, prova que o réu ocultou a prova? É suficiente para um pianista dizer que é difícil fazer um som sair diferente do outro e que a dificuldade da peça mal tocada prova seu arrojo e ousadia?

Outra – e importantíssima – semelhança entre a arte e o direito, é que os profissionais das duas artes são julgados em livre debate pela sociedade. O povo decide se os negros têm direitos iguais e se os homossexuais têm direito à união civil do mesmo modo como decide se Pollock é um gênio ou um só um doido mesmo. Por isso é legítimo discutir arte, como é legítimo e necessário discutir sentenças, especialmente as emitidas num clima de polarização política que toma conta dos próprios juízes. Hoje o Brasil acordou com pelo menos 4 juízes que, se artistas, não teriam espaço sequer na sala de provas de uma escola de música. Ficariam um tempo na sala de estudo, sob orientação de um professor, até que pudessem apresentar algo que se mostre belo por si, pela coerência interna no diálogo com uma linguagem. Se desenhistas, teriam que voltar a praticar linhas retas, até conseguirem fazer um traço distorcido não por falta de controle, mas por intenção em diálogo com uma tradição técnica (coisa que Pollock sabia fazer muito bem). Não vale usar a vontade descontrolada e desvairada – que nada mais é do que falta de técnica – como justificativa para aquele olho torto, para aquele som estridente. Os juízes que emitiram e confirmaram a sentença contra Lula combinaram duas formas de imbecilidade, o que me sugeriu essa comparação entre eles e – péssimos – estudantes de arte onde a arrogância e a vaidade suplantam a vontade de aprender: uma, a vontade de não ter que ver de novo o povo escolher o metalúrgico de Pernambuco como o presidente de nosso país; e a outra, a de supor que o direito não tem regra, não tem uma verdade material e factual à qual se reportar. Os juízos “lavou dinheiro sim, senhor” e “olha, o retrato tá igualzinho!”, tem em comum essa mistura de vaidade e arrogância do mau aprendiz de arte e do juiz que mistura sua visão política com a verdade factual sob a qual o direito precisa se reportar – isso sim! – coercitivamente.

O povo que saiu às ruas ontem sabe que esse julgamento foi uma farsa. E na arte de julgar, não há jabá que retire desses juízes sua verdadeira face: meros cretinos a serem jogados na lata de lixo da história. Porque o direito não é a liberdade da vontade. O “Triunfo da Vontade” – título da obra de uma grande artista que não soube, ou não pôde relacionar seu trabalho com a política de seu tempo – é só isso que sabemos que foi: um caminho para a pior forma de autoritarismo de que temos exemplo na história.

 

25/01/2018

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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