Na madrugada sonhei com bichos, depois da goleada da seleção, mas indigesto e com ressaca do ministro astronauta falando do apoio à ciência.
Fatos assim deixam um homem confuso em sua mente. Tudo mente, até a onça no pantanal, como novela repaginada.
A onça, ardilosa e voraz quando tem fome, cheia de poderes. Pensei em João Câmara Cascudo, puta brasileiro bacana, e transcrevi duas fábulas recolhidas por ele, A Onça e o Bode, e a Onça e o Gato.
Bem sei, sonhar é bom, mas ressaca, Deus me guarde.
Cada qual que se encontre, se esconda ou fuja.
A onça e o bode
–
–
O Bode foi ao mato procurar lugar para fazer uma casa. Achou um sítio bom. Roçou-o e foi-se embora. A Onça que tivera a mesma ideia, chegando ao mato e encontrando o lugar já limpo, ficou radiante. Cortou as madeiras e deixou-as no ponto. O Bode, deparando a madeira já pronta, aproveitou-se, erguendo a casinha. A Onça voltou e tapou-a de taipa. Foi buscar seus móveis e quando regressou encontrou o Bode instalado. Verificando que o trabalho tinha sido de ambos, decidiram morar juntos.
Viviam desconfiados, um do outro. Cada um teria sua semana para caçar. Foi a Onça e trouxe um cabrito, enchendo o Bode de pavor. Quando chegou a vez deste, viu uma onça abatida por uns caçadores e a carregou até a casa, deixando-a no terreiro. A Onça vendo a companheira morta, ficou espantada:
— Amigo Bode, como foi que você matou essa onça?
— Ora, ora… Matando!… Respondeu o Bode cheio de empáfia. Porém, insistindo sempre a Onça em perguntar-lhe como havia matado a companheira, disse o Bode:
— Eu enfiei este anel de contas no dedo, apontei-lhe o dedo e ela caiu morta.
A Onça ficou toda arrepiada, olhando o Bode pelo canto do olho. Depois de algum tempo, disse o Bode:
— Amiga Onça, eu lhe aponto o dedo…
A Onça pulou para o meio da sala gritando:
— Amigo Bode, deixe de brinquedo…
Tornou o Bode a dizer que lhe apontava o dedo, pulando a Onça para o meio do terreiro. Repetiu o Bode a ameaça e a onça desembandeirou pelo mato a dentro, numa carreira danada, enquanto ouviu a voz do Bode:
— Amiga Onça, eu lhe aponto o dedo…
Nunca mais a Onça voltou. O Bode ficou, então, sozinho na sua casa, vivendo de papo para o ar, bem descansado.
–
Em: Contos tradicionais do Brasil (folclore), Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro, Edições de Ouro: 1967
—–
Este conto foi arrebanhado por Câmara Cascudo do volume de J. da Silva Campos, Contos e fábulas populares da Bahia, em Folk-Lore no Brasil, Ed. Basílio de Magalhães, Rio de Janeiro, 1928.
—
Câmara Cascudo lembra que esta variante do conto, [popular no Brasil inteiro, com versões também de origem indígena], “tem reminescência africana, resquício religioso dos negros do Congo Zambese“, da região Bantu.
A onça e o gato
–
A Onça pediu ao Gato que lhe ensinasse a saltar. O Gato saltou, então, de todas as maneiras. Quando terminou, a Onça disse que ia também saltar para ver se tinha aprendido. Começou então a repetir os saltos do Gato. Mas, de repente, deu um pulo sobre o mestre para devorá-lo. Este, porém, deu um salto para o lado, evitando o golpe da Onça. Queixou-se esta de que o Gato não lhe tinha ensinado esse salto. Ao que o Gato respondeu:
— “Não sou tão tolo que, ao menos, não reservasse este pulo para me livrar das suas garras”. E com outro salto de mestre, sumiu no mato.
–
–
Em: Terra Bandeirante, 3º ano, a história, as lendas e as tradições do estado de São Paulo, Theobaldo Miranda Santos, São Paulo, Agir: 1954.