Por RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de História na Universidade Federal da Bahia
Sem dúvida, a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018 é um marco importante na história do fortalecimento da direita radical brasileira. Mas essa não é a principal vitória. A presença de Jair Bolsonaro na Presidência da República entre 2019 e 2022 não foi o maior perigo que o bolsonarismo pode representar à democracia brasileira. Digo isso porque o poder real não está mais no Palácio do Planalto, na Presidência da República.
A grande característica da crise democrática ainda em curso no Brasil é, exatamente, o esvaziamento da instituição Presidência da República. O próprio golpe parlamentar de 2016 que derrubou Dilma Rousseff traduz esse processo. Basta lembrar que o pretexto que a coalizão golpista escolheu para cassar a presidenta foram as tais pedaladas fiscais, o que significou a criminalização da atuação anticíclica do Poder Executivo em situações de crise econômica. Desde então, o poder do Presidente da República foi cada vez mais esvaziado. Vejamos a cronologia do esvaziamento:
A PEC 65, que impôs o Teto de Gastos, foi aprovada ainda em dezembro de 2016, poucos meses depois do impeachment. Assim, a Presidência da República perdeu o controle sobre a política fiscal. Em fevereiro de 2021, a lei complementar n° 179 implementou a autonomia do Banco Central. A Presidência da República perdia o controle sobre a política monetária. Ao longo de 2020, o Congresso Nacional instituiu a prática do orçamento secreto, que tirou do Poder Executivo o controle sobre 20% do orçamento.
Todo esse processo de esvaziamento aconteceu ao longo dos governos Dilma, Temer e Bolsonaro. Três presidentes fracos, mas por motivos diferentes. Dilma mostrou-se inadequada para a função pois tentou transformar a política em tecnocracia, tentou ser presidente da República agindo como CEO de uma grande empresa. Erro fatal. Temer era um corrupto contumaz, denunciado duas vezes pela Procuradoria Geral da República em exercício de mandato, algo inédito na história do Brasil. Bolsonaro era um agitador ideológico que em nenhum momento tentou, de fato, governar. Então, não se incomodou em entregar o 1/5 do orçamento nas mãos de Arthur Lira em troca da permissão para se comportar como um arruaceiro.
O presidente da República tornou-se figura quase alegórica. A Constituição de 1988, que estabelece o presidencialismo como forma de governo, está completamente desmoralizada. O verdadeiro poder está sendo disputado entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, com a Presidência torcendo para a briga, na expectativa de retomar algum pedacinho do que foi perdido. A direita radical entendeu esse cenário melhor que as forças políticas progressistas.
Enquanto o campo político progressista só faz pensar em 2026 e torcer para que Lula tenha saúde suficiente para liderar a jornada da reeleição, o bolsonarismo tem um projeto articulado e organizado de construção de hegemonia nos municípios, onde acontece a eleição para o Poder Legislativo. Deputados federais, deputados estaduais e senadores ajudam a eleger prefeitos e vereadores, e vice-versa. A direita radical dedica atenção a outros espaços de poder que sequer estão no radar das forças progressistas, como os Conselhos Tutelares e o Conselho Federal de Medicina. A estratégia usada é a guerra cultural, com a constante mobilização dos valores morais que são socialmente hegemônicos.
Rejeição ao aborto, à liberação das drogas, defesa da dita família tradicional, crítica à educação sexual nas escolas, punitivismo na área da segurança pública, entre outras coisas.
Desse jeito, a direita radical brasileira vem conseguindo alterar a cultura das eleições legislativas, que tradicionalmente eram desideologizadas, marcadas pela dinâmica paroquial, por relações pessoais construídas no plano da localidade. A própria legislação eleitoral colabora para essa desideologização com o voto nominal, o que enfraquece os partidos políticos (e as ideologias). O bolsonarismo está superando essa tradição, e aqui encontra-se sua principal vitória. O processo começou em 2014, quando Jair Bolsonaro ganhou notoriedade nacional, na esteira das “Jornadas de Junho de 2013″ e dos primeiros suspiros da Operação Lava Jato. Bolsonaro farejou a oportunidade e tentou se lançar à Presidência da República. Não conseguiu o apoio de Ciro Nogueira, na época o presidente do seu partido, o PP. Tentou cavar um lugar como vice na chapa do Aécio, e foi desprezado. Teve, então, que se contentar com a reeleição para a Câmara dos Deputados. O desempenho foi excepcional, com o crescimento de 380% em relação à votação que tinha tido em 2010. Bolsonaro deixava de ser o simples representante dos interesses corporativos dos militares e transformava-se em líder de uma orientação ideológica.
De lá para cá, a ideologização das eleições legislativas tornou-se cada vez mais intensa, com as forças conservadoras, antes no PSL e agora no PL, ocupando o Congresso Nacional, especialmente a Câmara dos Deputados, impulsionadas por pautas claramente ideológicas. O objetivo para 2026 é dominar, também, o Senado, onde está a Comissão de Constituição e Justiça, a CCJ, que é a porta de entrada para controlar o poder judiciário. Com o controle da CCJ, do plenário do Senado e da Câmara dos Deputados, o bolsonarismo conseguirá alterar a estrutura do Supremo Tribunal Federal. Não vão precisar dos militares, de tanque na rua. Conseguirão o que querem na democracia, no embalo da guerra cultural.
À luz do dia, o bolsonarismo tentará reabilitar os direitos políticos de Jair Bolsonaro. Depois, escolherá um sucessor, que provavelmente será Eduardo ou Flávio. Mas a prioridade está no cotidiano das cidades brasileiras, onde os militantes estão fazendo trabalho de base, travando a guerra cultural, convencendo a população de que as esquerdas representam ameaça para os valores tradicionais.
Enquanto isso, as forças progressistas mordem a isca, investindo duas fichas nas pautas do comportamento e jogando com base nas regras do presidencialismo, que ainda estão lá na Constituição, mas já não existem na prática.