Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
A ascensão política de Jair Bolsonaro ainda será por muito tempo questão a ser explicada pelos estudiosos da política brasileira. Como aquele homem vulgar, completamente fora dos debates políticos relevantes, conseguiu vencer uma eleição presidencial? Tá aí nosso dilema geracional!
Acredito que a resposta passa pela combinação entre dois fatores: a apurada intuição política do personagem grotesco que a maioria de nós por muito tempo subestimou (alguns ainda subestimam) com as condições estruturais que levaram o regime político instituído pela Constituição de 1988 ao colapso.
Bolsonaro farejou antes aquilo que passou despercebido por quase todos nós.
Já em 2014, a crítica sistêmica quase decidiu as eleições presidenciais. Basta lembrarmos que Marina Silva, terceira colocada na disputa com seus mais de 22 milhões de votos, passou a campanha inteira falando em uma tal “nova política”. PT e PSDB foram taxados como representantes de um sistema político envelhecido, maculado pela corrupção e que precisava ser renovado. A Lava Jato já fazia seus primeiros estragos na cultura política brasileira. Não foi o suficiente para impedir a repetição da tradicional disputa entre petistas e tucanos no segundo turno das eleições presidenciais. Mas foi quase. Os anos seguintes mostraram que a força da crítica sistêmica tinha vindo pra ficar.
Bolsonaro percebeu antes de nós. Precisamos admitir.
Em 30 de outubro de 2014, assim que a eleição acabou, o então deputado reeleito pelo Rio de Janeiro foi entrevistado pelo jornal “Estadão”. Disse que Marina Silva não controlaria a insatisfação da sociedade civil com o sistema político. Seria necessário alguém completamente de fora daquela ordem política, alguém socialmente lido como outsider. É claro que Bolsonaro não formulou com essas palavras, pois lhe falta vocabulário, sofisticação, verniz intelectual, o que não quer dizer que seja burro. Tolo é quem acha que inteligência é mera questão de estética.
Naquele momento, Bolsonaro começou sua pré-campanha. Foram quatros anos circulando pelo país, se alimentando da crítica ao sistema, alimentando a crítica ao sistema. Enquanto isso, todos nós, seus adversários, fazíamos política dentro da moldura tradicional, como se nada tivesse mudado, como se junho de 2013 e a operação Lava jato não tivessem existido.
Assim, como outsider, como a personificação do horizonte de crítica sistêmica aberto em junho de 2013, Bolsonaro subiu a rampa do Planalto para se tornar o 38° Presidente do Brasil. Assim, governou até hoje. Mais de dois anos de mandato.
Bolsonaro conseguiu inventar a figura do “Presidente outsider”.
Mesmo no topo do establishment institucional, ele ainda se apresenta como um “de fora”, como alguém que está sendo perseguido pela ordem sistêmica. Esse é o seu argumento máximo, acionado para justificar tudo, alimentado em cada live, em cada entrevista, em cada discurso.
O insucesso no combate à pandemia é explicado pela ação do “sistema” (STF) que não permitiu ao presidente liderar adequadamente o país.
A crise econômica é explicada pela ação do “sistema” (prefeitos e governadores) que boicotaram a atividade econômica com a adoção das medidas restritivas na tentativa de controlar a pandemia.
Dessa forma, Jair Bolsonaro pretende chegar competitivo nas eleições de 2022. Com números catastróficos em todas as áreas, dizendo que o fracasso de seu governo é resultado da reação de um sistema corrupto que resiste em desaparecer.
As pesquisas mostram que o presidente vem perdendo força, enquanto Lula, coordenando as forças do establishment político, desponta como favorito para a corrida presidencial.
A disputa entre Lula e Bolsonaro, a ser confirmada, será a disputa entre a ordem democrática e a crítica sistêmica.
Bolsonaro aposta que o ambiente político que alimenta a crítica sistêmica desde 2014 ainda vai pautar o debate eleitoral em 2022, que ainda será capaz de mobilizar o eleitorado.
Lula aposta que o mal-estar social geral provocado pelo trauma da pandemia, pelo desemprego em massa e pela epidemia de fome e miséria trará os eleitores à antiga racionalidade, à expectativa de que o governante maior do país atue como provedor de direitos sociais e não como líder de uma revolução.
Impossível saber o que vai acontecer. Por mais pesquisas que tenhamos, ainda é prematuro antecipar como estará o humor do eleitorado. Certo é que a ordem democrática não esperará as eleições para contra-atacar, para tentar derrubar o outsider que desafiou o sistema.
O discurso do senador Renan Calheiros em 27 de abril, ao assumir a relatoria da CPI do Genocídio, é recado claro: o establishment político desistiu de tentar controlar Jair Bolsonaro. Finalmente, entendeu que o presidente será sempre disruptivo, mesmo com curtos momentos de recuo e aparente moderação. Será sempre o agitador, aquele que boicota as instituições estabelecidas.
Com 30 anos de atraso, a instituições da democracia brasileira decidiram que Bolsonaro precisa ser destruído. É desesperador que tenha demorado tanto pra ficha cair. Olhando daqui, parecia tão óbvio.
Bolsonaro não quer governar dentro da ordem. Quer ser o ditador do Brasil.
O discurso de Renan foi peça retórica que entra para os anais da história política brasileira. Renan falou como o legítimo representante da ordem, do sistema. Falou para os seus pares, mas também falou para o povo. Enumerou os crimes provocados pela administração bolsonarista. É como se estivesse dizendo: “Vejam no que deu a renovação que vocês tanto queriam!”.
Sintomaticamente, a CPI do Genocídio, que tem tudo para ser o calvário de Jair Bolsonaro, foi resultado da ação articulada entre STF e Senado. A corte superior do poder Judiciário e a casa nobre do poder Legislativo, tão atacados e ameaçados pelo bolsonarismo, se uniram para aquela que pode ser a batalha final.
Não há mais espaço para negociação.
Ou Bolsonaro será varrido pelo sistema que tentou destruir ou vai conseguir colocar seus exércitos na rua (o da farda verde-oliva e as milícias) para romper de vez com a ordem democrática. Os próximos meses serão os mais dramáticos desde 1964. A crise ainda tá longe de terminar.