O contra-ataque da ordem democrática, com 30 anos de atraso

As instituições da democracia brasileira decidiram que Bolsonaro precisa ser destruído

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

A ascensão política de Jair Bolsonaro ainda será por muito tempo questão a ser explicada pelos estudiosos da política brasileira. Como aquele homem vulgar, completamente fora dos debates políticos relevantes, conseguiu vencer uma eleição presidencial? Tá aí nosso dilema geracional!

Acredito que a resposta passa pela combinação entre dois fatores: a apurada intuição política do personagem grotesco que a maioria de nós por muito tempo subestimou (alguns ainda subestimam) com as condições estruturais que levaram o regime político instituído pela Constituição de 1988 ao colapso.

Bolsonaro farejou antes aquilo que passou despercebido por quase todos nós.

Já em 2014, a crítica sistêmica quase decidiu as eleições presidenciais. Basta lembrarmos que Marina Silva, terceira colocada na disputa com seus mais de 22 milhões de votos, passou a campanha inteira falando em uma tal “nova política”. PT e PSDB foram taxados como representantes de um sistema político envelhecido, maculado pela corrupção e que precisava ser renovado. A Lava Jato já fazia seus primeiros estragos na cultura política brasileira. Não foi o suficiente para impedir a repetição da tradicional disputa entre petistas e tucanos no segundo turno das eleições presidenciais. Mas foi quase. Os anos seguintes mostraram que a força da crítica sistêmica tinha vindo pra ficar.

Bolsonaro percebeu antes de nós. Precisamos admitir.

Em 30 de outubro de 2014, assim que a eleição acabou, o então deputado reeleito pelo Rio de Janeiro foi entrevistado pelo jornal “Estadão”. Disse que Marina Silva não controlaria a insatisfação da sociedade civil com o sistema político. Seria necessário alguém completamente de fora daquela ordem política, alguém socialmente lido como outsider. É claro que Bolsonaro não formulou com essas palavras, pois lhe falta vocabulário, sofisticação, verniz intelectual, o que não quer dizer que seja burro. Tolo é quem acha que inteligência é mera questão de estética.

Naquele momento, Bolsonaro começou sua pré-campanha. Foram quatros anos circulando pelo país, se alimentando da crítica ao sistema, alimentando a crítica ao sistema. Enquanto isso, todos nós, seus adversários, fazíamos política dentro da moldura tradicional, como se nada tivesse mudado, como se junho de 2013 e a operação Lava jato não tivessem existido.

Assim, como outsider, como a personificação do horizonte de crítica sistêmica aberto em junho de 2013, Bolsonaro subiu a rampa do Planalto para se tornar o 38° Presidente do Brasil. Assim, governou até hoje. Mais de dois anos de mandato.

Bolsonaro conseguiu inventar a figura do “Presidente outsider”.

Mesmo no topo do establishment institucional, ele ainda se apresenta como um “de fora”, como alguém que está sendo perseguido pela ordem sistêmica. Esse é o seu argumento máximo, acionado para justificar tudo, alimentado em cada live, em cada entrevista, em cada discurso.

O insucesso no combate à pandemia é explicado pela ação do “sistema” (STF) que não permitiu ao presidente liderar adequadamente o país.

A crise econômica é explicada pela ação do “sistema” (prefeitos e governadores) que boicotaram a atividade econômica com a adoção das medidas restritivas na tentativa de controlar a pandemia.

Dessa forma, Jair Bolsonaro pretende chegar competitivo nas eleições de 2022. Com números catastróficos em todas as áreas, dizendo que o fracasso de seu governo é resultado da reação de um sistema corrupto que resiste em desaparecer.

As pesquisas mostram que o presidente vem perdendo força, enquanto Lula, coordenando as forças do establishment político, desponta como favorito para a corrida presidencial.

A disputa entre Lula e Bolsonaro, a ser confirmada, será a disputa entre a ordem democrática e a crítica sistêmica.

Bolsonaro aposta que o ambiente político que alimenta a crítica sistêmica desde 2014 ainda vai pautar o debate eleitoral em 2022, que ainda será capaz de mobilizar o eleitorado.

Lula aposta que o mal-estar social geral provocado pelo trauma da pandemia, pelo desemprego em massa e pela epidemia de fome e miséria trará os eleitores à antiga racionalidade, à expectativa de que o governante maior do país atue como provedor de direitos sociais e não como líder de uma revolução.

Impossível saber o que vai acontecer. Por mais pesquisas que tenhamos, ainda é prematuro antecipar como estará o humor do eleitorado. Certo é que a ordem democrática não esperará as eleições para contra-atacar, para tentar derrubar o outsider que desafiou o sistema.

O discurso do senador Renan Calheiros em 27 de abril, ao assumir a relatoria da CPI do Genocídio, é recado claro: o establishment político desistiu de tentar controlar Jair Bolsonaro. Finalmente, entendeu que o presidente será sempre disruptivo, mesmo com curtos momentos de recuo e aparente moderação. Será sempre o agitador, aquele que boicota as instituições estabelecidas.

Com 30 anos de atraso, a instituições da democracia brasileira decidiram que Bolsonaro precisa ser destruído. É desesperador que tenha demorado tanto pra ficha cair. Olhando daqui, parecia tão óbvio.

Bolsonaro não quer governar dentro da ordem. Quer ser o ditador do Brasil.

O discurso de Renan foi peça retórica que entra para os anais da história política brasileira. Renan falou como o legítimo representante da ordem, do sistema. Falou para os seus pares, mas também falou para o povo. Enumerou os crimes provocados pela administração bolsonarista. É como se estivesse dizendo: “Vejam no que deu a renovação que vocês tanto queriam!”.

Sintomaticamente, a CPI do Genocídio, que tem tudo para ser o calvário de Jair Bolsonaro, foi resultado da ação articulada entre STF e Senado. A corte superior do poder Judiciário e a casa nobre do poder Legislativo, tão atacados e ameaçados pelo bolsonarismo, se uniram para aquela que pode ser a batalha final.

Não há mais espaço para negociação.

Ou Bolsonaro será varrido pelo sistema que tentou destruir ou vai conseguir colocar seus exércitos na rua (o da farda verde-oliva e as milícias) para romper de vez com a ordem democrática. Os próximos meses serão os mais dramáticos desde 1964. A crise ainda tá longe de terminar.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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