Nossa Bíblia é cópia da cópia da cópia…

Por frei Gilvander Moreira

Quando eu ainda criança comecei a ter contato com a Bíblia, pensava que a Bíblia era simplesmente Palavra sagrada, Palavra de Deus e que devíamos ler e buscar colocar em prática, mas ao estudar Teologia e principalmente no mestrado sobre hermenêutica bíblica é que fui descobrir que a Bíblia é literatura construída ao longo de 1.300 anos em um processo complexo que contou com uma multidão de pessoas que tinham fé no Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó, Javé, Deus solidário e libertador, que fez opção pelos escravizados/as e se aliou à caminhada e luta por “terra, pão e paz”.

A Bíblia não foi ditada por Deus aos escritores/as dela, mas foi escrita por homens e mulheres, em seus contextos históricos. Logo, para as pessoas cristãs – que acreditam no Deus Javé -, a Bíblia é Palavra de Deus, mas segundo pessoas humanas situadas historicamente com suas belezas e contradições. Ao estudarmos a Bíblia cristã descobrimos que a Bíblia é cópia da cópia da cópia … Por isso, quem lê a Bíblia de forma fundamentalista e se projeta nela tirando conclusões moralistas está completamente errado e se torna cego guiando cego e, muitas vezes, deixa de ser pastor/a e passa a ser “lobo travestido de cordeiro”, que não cuida do rebanho, mas o tosquia. É árido, mas veja abaixo um pouco da construção da Bíblia. 

Temos muitos Manuscritos de Textos Bíblicos em Hebraico. A Bíblia a que temos acesso hoje é fruto de cópias de cópias, pois, não existe mais nenhum texto original de todos os livros da Bíblia escritos na língua hebraica e aramaica. Estes manuscritos receberam o nome de Códices. Hoje eles não superam o número de 2.000. A maior parte desses códices foram escritos no século XIV da Era Cristã (E.C.); cerca de 50 manuscritos do séc. XIII E.C.; e oito do séc. XII E.C. Poucos são do séc. IX-XI E.C.. Entre esses está o códice dos profetas de Cairo do ano 895 E.C., escrito por Moisés Asher; o Códice de Aleppo, que compreendia todo o Primeiro Testamento da Bíblia, foi escrito na segunda metade do séc. X, e que serviu de base para a nova edição crítica aos cuidados da Universidade hebraica de Jerusalém. O códice dos profetas de Leningrado, do ano 916 E.C., com a vocalização supralinear babilonês; o Códico B 19ª de Leningrado, escrito em 1008 E.C. que compreende todo o Primeiro Testamento bíblico. 

A todos esses códices devem ser acrescidos os fragmentos de códices do séc. VII ao VIII da E.C. que foram encontrados na sinagoga em Cairo, no Egito, e poucos foram publicados. Graças a esta descoberta foi possível estudar diversos sistemas de vocalização em uso nos manuscritos hebraicos até o século XI, conhecida como vocalização de Tiberíades, que está em uso até hoje.

Muito importante para os estudos bíblicos foi a descoberta dos manuscritos ou fragmentos bíblicos encontrados nas grutas de Qumran. De todos os livros do Primeiro Testamento foram encontrados livros ou fragmentos, exceto o livro de Ester, que remonta ao séc. III a.E.C. ao I séc da E.C. Foram feitas diversas edições críticas do Texto Massorético (TM) – entre elas a Bíblia Hebraica Stuttgartensia. O Texto Massorético com a introdução das vogais e a disposição externa definitiva do texto é obra da escola de Moisè ben Asher, do séc. VIII-X da E.C.  As consoantes remontam certamente ao séc. I e II da E.C.  e foi fixado criteriosamente por judeus cultos e sábios sob a base de bons manuscritos antigos. 

Temos assim a certeza de poder ler em nossos dias o texto hebraico com as consoantes na sua forma, muito próximo dos últimos séculos antes de Cristo ou talvez do seu tempo e das primeiras comunidades cristãs. Ao confrontar com a tradução da LXX, com o Pentateuco Samaritano e outros documentos antigos, os estudiosos da história do Texto Massorético não hesitam em afirmar que o texto hebraico e aramaico não sofreu mudanças substanciais, por isso não teriam alterado o conteúdo principal.

Temos várias Traduções da Bíblia Hebraica. As antigas versões da Bíblia foram muito importantes, porque serviram para a reconstrução do texto bíblico original. Existem traduções inteiras da Bíblia, seja do Primeiro quanto do Segundo Testamento, mas não temos mais nenhum manuscrito nas línguas originais. Mesmo que tenhamos apenas cópias de cópias, estas versões são os textos que foram lidos, estudados e comentados nas Igrejas e comunidades antigas e nos oferecem a riqueza de seus comentários aos textos bíblicos.

Estes manuscritos foram submetidos às condições de transmissão próprias de seu tempo, por esta razão é muito importante o estudo, o confronto crítico de cada um deles, para poder reconstruir a sua história, o quanto possível com o seu original. Sabemos que alguns capítulos e/ou versículos foram escritos na língua aramaica e tantos outros foram traduzidos para esta língua.

Toda a Bíblia Hebraica foi traduzida para o Aramaico. Os textos originais em aramaico que integram a Bíblia Hebraica são muito poucos na proporção do texto hebraico. Todos os demais textos hebraicos da Biblia hebraica foram traduzidos para o aramaico, após o exílio da Babilônia e receberam o nome de Targumim. 

Os Targumim – plural de Targum – tem o significado de “interpretação”, no plural, “Interpretações”. Essas traduções possibilitaram aos descendentes dos Povos bíblicos, sediados na região da Babilônia, a terem acesso ao texto sagrado em hebraico, por meio da tradução para o aramaico. Com o passar dos anos os descendentes não falavam mais na língua materna e consequentemente não aprendiam mais a ler e escrever na língua dos pais, o hebraico.

  Havia até uma tradução separada de cada uma das partes da Bíblia Hebraica: a Torá (Instruções/Lei) os Nevivim (Profetas) e os Ketuvim (Escritos). 

Do Targum Jerosolimitano II eram conhecidos apenas alguns fragmentos, mas ele foi encontrado completo na Biblioteca do Vaticano. Além de ser escrito em ótimo aramaico, sua importância também está na antiguidade do texto. Dele se originaram o Targum Ionatan, que é também conhecido por Jerosolimitano I, e o Targum Onkelos do séc. IV da E.C. Este último teve grande aceitação entre os judeus pela sua fidelidade ao texto hebraico e por trazer poucas paráfrases arbitrárias.

Dos livros proféticos anteriores e proféticos propriamente ditos há a tradução de Ionatkan ben Uzziel, que mais se parece com uma paráfrase do que uma verdadeira tradução. 

Por fim, os Escritos que correspondem aos livros sapienciais, cuja tradução é obra de diversos autores, seja pelo seu estilo, como pela variedade de línguas. Os livros de Jó, Salmos e Provérbios trazem uma tradução literal do texto hebraico, enquanto o Cântico dos Cânticos a tradução é parafraseada e livre. 

Na crítica textual para a reconstrução do texto original, os Targumim tem maior ou menor importância segundo a fidelidade ou não, ao texto original, de quem os traduziu. Mas esses são importantes para a história antiga da hermenêutica bíblica.

Tradução Siríaca da Peshita de certa forma foi favorecida pela proximidade da língua siríaca com o hebraico e o aramaico. Ela continha grande parte do Primeiro Testamento, mas não era completa e foi feita no II séc. da E.C., mas em seguida ela foi completada com os livros deuterocanônicos tomados de uma tradução da LXX, exceto o Eclesiástico, que foi traduzido do hebraico. Esta tradução é muito fiel, clara pela elegância da língua. Contudo, ela foi deteriorada pela infiltração de lições da LXX, ainda assim, ela continua sendo um ótimo subsídio para a crítica documental do Primeiro Testamento.  

As traduções árabes do Primeiro Testamento hebraico foram feitas ainda na Idade Média, seja do texto hebraico, grego ou siríaco, pelo fato de ser um texto recente e em forma parafraseada, pouco servem para reconstituir o texto hebraico antigo.  

Referências 

BÍBLIA HEBRAICA STUTTGATENSIA. Stuttgart, Germany, Gesamtherstellung Biblia-Druck, 1967/77, 1983.

MARTINI Carlo M.; BONATTI D. Pietro. Il Messaggio della salvezza, Introduzione Generale. Torino: Elle Di C, 1990. p. 185-215.

04/01/2024

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética 

3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022

6 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 – Contexto para o estudo do Livro de Josué – Mês da Bíblia 2022 – Por frei Gilvander – 30/8/2022

12 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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