Não existe erro pequeno na política

Eduardo Girão e o processo constituinte chileno. Qual a relação? O que uma coisa tem a ver com a outra?
Senador Eduardo Girão se apequena diante do ministro Sílvio Almeida - Pedro França/Agência Senado

Por Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

Hoje, venho tratar de dois assuntos que, aparentemente, não têm relação entre si. Apenas aparentemente…

O primeiro é o papel vergonhoso desempenhado pelo senador Eduardo Girão (NOVO/CE) na Comissão de Direitos Humanos do Senado no último dia 27 de abril.

Para quem não viu, um resumo:

Girão tentou “presentear” o ministro Sílvio Almeida com a réplica de um feto abortado. O objetivo era constranger o ministro, colando nele a pecha de abortista. Silvio Almeida reagiu, pediu seriedade no tratamento com tema tão sensível e exigiu respeito à sua condição de ministro de Estado e futuro pai. Girão retornou ao seu lugar, apequenado.

Esse tipo de comportamento não é novidade na trajetória parlamentar do senador Girão, que já havia se destacado na CPI da Covid como representante do negacionismo bolsonarista.

O segundo assunto se refere ao Chile.

Provavelmente, o leitor e a leitora lembram dos protestos que abalaram a sociedade chilena em 2019. No alvo da insatisfação popular estava a Constituição de 1980, herança da ditadura neoliberal de Pinochet. O povo chileno foi às ruas para exigir uma nova Constituição que criasse um sistema previdenciário digno, garantisse acesso gratuito às universidades públicas e a outros direitos sociais negados pela Carta de 1980.

A eleição de Gabriel Boric, em dezembro de 2021, sugeria que o Chile estava no caminho certo para superar, de vez, a ditadura de Pinochet.

Não foram necessários nem dois anos para que a situação política chilena mudasse completamente. Há poucos dias, a extrema direita conquistou a maioria das cadeiras na assembleia que redigirá a próxima Constituição. Ou seja, o movimento pela reconstitucionalização do país que nasceu nas ruas e ideologicamente orientado à esquerda pode resultar em uma nova Constituição que seja pior que a atual.

Mas o leitor e a eleitora ainda devem estar perguntando: o que uma coisa tem a ver com a outra?

O que o senador Eduardo Girão tem a ver com o revés no processo constitucional chileno?

Em ambos casos, problemas poderiam ser evitados se os movimentos das lideranças progressistas tivessem sido melhor calculados.

Explico.

Abril de 2018, véspera das eleições gerais no Brasil. Vários jornalistas, diversos veículos de imprensa, anunciavam que a ex-presidenta Dilma Rousseff se candidataria ao Senado pelo estado do Ceará. O acordo já estava costurado entre PT e PDT, na época aliados umbilicais na política cearense. O PT chegou a alugar uma casa para Dilma morar em Fortaleza. Pesquisas apontavam Dilma com 60% das intenções de voto.

No entanto, a cúpula petista mudou de ideia e decidiu implodir o acordo. Não quis entrar em conflito com o então senador Eunício Oliveira, que tentava a reeleição. Eunício era aliado histórico de Lula, apesar de ter apoiado o golpe de 2016. As lideranças petistas avaliavam que Dilma seria competitiva em Minas Gerais, seu estado natal, ignorando que naquele momento o antipetismo era praticamente interditante na região sudeste do país.

A operação foi desastrada em todos os aspectos: em Minas Gerais, Dilma foi contundentemente derrotada, ficando em 4° lugar. No Ceará. Eduardo Girão foi eleito, derrotando Eunício Oliveira.

Onde hoje está Eduardo Girão, poderia estar Dilma Rousseff. Faria toda diferença.

Corta para o Chile….

No clima dos protestos de 2019 e da vitória eleitoral de Boric, a esquerda chilena submeteu à população um polêmico projeto constitucional em setembro de 2022.

O texto priorizava as agendas que efetivamente levaram o povo às ruas? Focava na aposentadoria e no fim da cobrança de mensalidades nas universidades públicas?

Não!! A prioridade não era essa.

O projeto apresentado priorizava as agendas identitárias. Duas propostas eram especialmente problemáticas:

1) Paridade de gênero na representação parlamentar.

Seria determinação constitucional que as cadeiras nas diversas esferas do Legislativo chileno fossem igualmente divididas entre homens e mulheres. A proposta não consistia na paridade nas condições de disputa eleitoral, como, por exemplo, divisão equânime de verba partidária ou de tempo de propaganda na TV.

Tratava-se de violar a matemática eleitoral, impondo a obrigatoriedade da paridade de gênero na representação parlamentar. A premissa é de que, naturalmente, mulheres representam mulheres e homens representam homens, independentemente do que os eleitores digam nas urnas. A proposta era uma ofensa ao princípio sagrado da democracia representativa: a soberania dos cidadãos e cidadãs, manifestada na opinião eleitoral.

2) O projeto do “Estado plurinacional”.

Basicamente, consistia em entregar partes do território do país à administração direta das comunidades indígenas. Isso faria todo sentido no século XVI, mas hoje seria grave ataque à soberania nacional e ao próprio Estado chileno. As iniciativas de reparação precisam encontrar seus limites objetivos no simples fato de que é impossível voltar no tempo. Nem tudo pode ser reparado, nem tudo pode ser corrigido.

Comunidades indígenas devem ser protegidas, com direito a viver em territórios onde seja possível preservar suas tradições e costumes. Mas é o Estado nacional, democrático, quem garante a proteção. Nada diferente disso pode sequer ser cogitado.

A Constituinte identitária assustou a população. 61.9% rejeitaram o projeto. Uma surra!!!

A esquerda chilena perdeu uma oportunidade histórica de refundar seu país.

Eduardo Girão e o processo constituinte chileno? Qual a relação? O que uma coisa tem a ver com a outra?

Nos dois casos, fica evidente como não existe erro pequeno em política. Todo erro é grande. E como dizia o Barão de Itararé, o problema das consequências é que elas vêm depois.

Mas também é verdade que é sempre possível aprender. Que sirva como consolo.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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