Em outubro de 2005, eu subia o afluente Rio von Steinen, um dos formadores do Rio Xingu, com equipe da EPM/Unifesp, para a vacinação indígena e diagnóstico dermatológico. Aportamos numa pequena aldeia de um clã dos indígenas Waurá. Na jovem aldeia, conheci Muri Waurá, o ancião daquela comunidade, tal aqueles senhores que entregavam a palma da mão para serem lidas, sua saúde saberem.
Nos anos seguintes, até ontem, onde a morte encerrou a história de Muri, desvelei um grande sábio, pajé, raizeiro, parteiro e historiador do povo Wauja e do Alto Xingu. Ele sobrevivera à epidemia de sarampo dos anos 50, assistiu à chegada dos irmãos Villas-Bôas e à formação da Terra Indígena do Xingu.
Entre idas e vindas, alguns anos após, o reencontrei na aldeia Pyuluene, sob o escuro de sua grande casa. Quando na noite só uma pequena fogueira aquecia e nos iluminava, vi em um canto, grande pele de onça, encantado fiquei. Ali entendi o cinto de onça que Muri sempre usava, a marca do pajé e sua força abstrata, tão ágil e versátil, típico de homem que em certos momentos precisa virar onça também, coisas dos indígenas, DNA dum saber nosso, que tolos negamos entre infames poderes .
Hoje, Muri Waurá, não está mais entre nós, voou também como as aves que ele dialogava. Partiu entre as complicações da Covid, entre tantos patriarcas partiu também. Ficarei com o olhar dele que transmitia paz e era meigo. Ele era daquelas pessoas raras que passam pelo mundo, sábio como é uma biblioteca, um HD, um anagrama.
Tal lágrima, uma gota, uma chuva, rio, Muri deu um mar, como meandros ou oceano será agora.