Moro é o cabrito a ser sacrificado para salvar o que resta da Lava Jato

"Uma questão para pensar: como considerar válida alguma prova produzida por um juiz incompetente? Desde 2014 denunciávamos, dezenas de juristas e eu, que Moro não tinha essa competência toda"

Por Lenio Luiz Streck, jurista e professor – Artigo reproduzido do Consultor Jurídico (Conjur)

1) A dupla face da incompetência
O subtítulo é de uma ambiguidade bárbara: um juiz incompetente. Nos dois sentidos. Fez gato e sapato. Prendeu. Condenou. E agora descobriram que ele não tinha competência.

Moro parece ser o cabrito a ser sacrificado para salvar a chibarrada (coletivo de cabritos). De todo modo, o bom cabrito não berra, chia!

Se Moro foi para o sacrifício, foi para tentar salvar o que resta da “lava jato” e seus parceiros da força tarefa — cuja suspeição está esculpida em carrara.

2) A suspeição não deve ser julgada? Foi sepultada?
Com a decisão, Fachin tira do foco e do mundo jurídico a suspeição que seria julgada em breve.  Será que eliminou a discussão da suspeição? Sim e não.

Sim, se o STF confirmar a decisão de Fachin sem ressalvas — por exemplo, aludindo às suspeições. E sim também se o juiz de Brasília não aceitar como prova qualquer coisa que tenha sido feito por Moro e cia. Nessas hipóteses, o assunto se esvai.

A resposta será “não” se o novo juiz tentar aproveitar provas contaminadas de Curitiba. Nesse caso, começa tudo de novo. Porque a defesa dirá que Moro era suspeito. Logo, tudo o que produziu é nulo, irrito, nenhum. Aliás, em termos de competência territorial, o próprio Fachin já disse que o que Moro fez é nulo, irrito.

Mas tem mais: na medida em que Fachin não anulou todos os processos, e apenas a decisão, então ele está dizendo que há provas que podem ser aproveitadas. Aí vem a questão: esse é o ponto que permite, desde já, manter a decisão do julgamento da suspeição de Moro.

Afinal, o STF tem de dizer se Moro, para além de ter sido considerado incompetente, foi suspeito. Isso não pode ser sonegado. Só não seria assim se Fachin tivesse anulado os dois processos e tivesse determinado a expulsão das provas envenenadas por suspeição. Simples assim.

3) Conclusão: Lula ficou preso mais de 500 dias por causa de um juiz incompetente
A propósito, há uma anedota jurídica assim: o juiz diz para o advogado que não poderá julgar a causa por ser incompetente. Ao que o causídico, tirando o lenço do bolso, diz: “Que é isso, excelência? Vossa Excelência é muito competente nas coisas que faz”. No caso de Moro, sempre se disse ser um juiz incompetente.

Certa vez eu critiquei Moro por ter postado uma decisão — dessas anuladas — em dois minutos. Explico: ele recebeu as alegações da defesa e pimba! Dois minutos e lá estava a sentença… Condenatória, é claro. Critiquei-o. E ele veio com duas pedras na mão, acompanhado por seu fiel escudeiro, Deltan. Afinal, qual seria o problema de um juiz postar uma decisão dois minutos depois de o advogado entregar as alegações finais? Dizia eu: qual é o problema de um juiz incompetente decidir em dois minutos? Qual é o problema de fazer um simulacro desse tipo? Qual seria o problema de o juiz, em minutos, ler as alegações e sentenciar em uma centena de laudas? Bom, eu tinha razão. Esse comportamento de Moro também mostra que Fachin tem razão: Moro era um juiz incompetente.

4) Em síntese
No mais, resumindo:

1) Fachin reconhece hoje o que deveria ter sido reconhecido há três anos;

2) Ele decidiu que havia incompetência territorial e, assim, baixou os casos de Lula que tratam da suspeição (que contaminariam toda a LJ, e não só Lula);

3) Consequência (se o STF mantiver a decisão de Fachin): os processos podem começar de novo; o MPF do DF deve examinar para ver se oferece denuncia em Brasília; o juiz tem de receber a denúncia; o juiz pode não querer aproveitar qualquer prova advinda de Curitiba (aliás, ele mesmo já tem precedente anulando provas decorrentes de juiz incompetente!);

4) De todo modo, na hipótese de o juiz aproveitar alguma coisa de Curitiba que tenha cheiro de Moro, a defesa pode fazer impugnações. Qual o fundamento? Suspeição e parcialidade. Com base em tudo que já sabemos;

5) As interceptações usadas contra Lula foram anuladas. Já não podem ser utilizadas.

6) Ainda: pode-se ler a decisão como manobra para não reconhecer a suspeição de Moro e para parecer que o único erro cometido por Moro foi estar em Curitiba. É a tese do sacrifício do cabrito;

7) Ademais,  uma questão para pensar: como considerar válida alguma prova produzida por um juiz incompetente?; 

8) Desde 2014 denunciávamos, dezenas de juristas e eu, que Moro não tinha essa competência toda… Nos dois sentidos. Eu até brincava: cuidado para não brigar em um posto Petrobras que vai cair na mão de moro em Curitiba;

9) Lembrando, por fim, que o ministro Fachin aceitou que os processos envolvendo a Odebrecht fossem para Curitiba;

10) Eis uma questão: se for mantida a anulação decretada por Fachin, a questão que fica(rá) é, de novo: por que transformamos o Direito em uma questão politica e aceitamos o lawfare?;

11) Sim, porque só um evidente lawfare justifica que um juiz condene um ex-presidente (e tanta gente) depois de forçar uma competência que nunca teve. Chamávamos a isso de “pam-competência”. Poucos quiseram ouvir nesses anos todos. Parcela grande da comunidade jurídica diz que os fins justifica(va)m os meios. Pois é. Vale até torcer para um juiz incompetente.

Talvez por isso no futebol tenham introduzido o VAR. A pretensão do VAR é ser um remédio contra árbitros incompetentes, que assinalam pênaltis no meio do campo e saem comemorando com o time adversário.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Bela nota de aula. parabéns! Sua luta por uma justiça digna é reconhecida.

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