Me desculpa se soou como ameaça

A coluna “Café com muriçoca” é um espaço de compartilhamento literário dos Jornalistas Livres. Hoje a crônica "Me desculpa se soou como ameaça” de Dinha

“A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.”
Carlos Drummond Andrade – Nosso tempo

Como diz o colega Raul: “tem dias que a gente se sente, um pouco, talvez, menos gente”. Eu tenho me sentido assim, ultimamente. Ceis não?

Quando defendi meu mestrado, eu repetia o tempo todo que a humanidade possui uma essência. Nas religiões, essa essência é tratada como alma, como coisa que nasce com a gente, mas, pra sociologia de bandeira vermelha, essa essência foi e está sendo construída ao longo da história humana.

Essa “alma”, então, se alguém tivesse que descrever o caráter dela, poderia dizer que ela é amiga da liberdade e da solidariedade. Ela é também uma alma trabalhadora, porque quando trabalhamos é aí que nossa divindade melhor aparece: transformamos água em vinho (desde que tenhamos acesso às uvas, óbvio) e multiplicamos os pães e os peixes (plantando, colhendo, moendo, pescando, fazendo fogo e cozinhando).

Essa nossa alma humana faz com que a gente tenha auto consciência e individualidade e senso de coletividade. Ou seja, faz com que a gente saiba que somos seres únicos, mas precisamos do coletivo pra existirmos (física e espiritualmente). É como diz aquela velha frase de banheiro: “penso, logo, desisto”.

Agora, sem maldade, tenho sentido uma dor entre o peito e o estômago que, pela quantidade de tarja preta vendido no Brasil, desconfio que não é só minha. Se fosse antigamente, eu diria que tamo tudo na fossa… E qual a razão dessa “fossa”, minhas senhoras e meus senhores,se não é a insegurança, o medo, a incerteza de não saber se teremos o pão, o peixe, o vinho e o fogo – pra ontem?!

Pior que, na quebrada, fazia uma cota que a gente não sentia uma instabilidade tão grande. A insegurança alimentar, ou, melhor, como nos lembra Helena Silvestre (em Ensaio sobre a fome – livro finalista do Prêmio Jabuti, 2019), a fome… liga?… cresceu ao ponto de desnutrir a alma de pessoas de todas as idades.

E… vem cá, vê se você concorda comigo: a humilhação de caçar comida no lixo é tão violenta quanto as abordagens policiais nas favelas – ela intimida, mata e deixa sequelas. Além disso, como violência gera mais violência – porque nós aqui somos pobres e não trouxas – cada ser humano desse lugar tem sido um grande barril que vai pouco a pouco se enchendo de pólvora. Fora que essa geração que tá aí não fica “na fossa”, não, fica no “mó ódio”, ceis entende a diferença? Quando a gente explodir vai voar estilhaço pra todo lado e tudo vai voltar a ser questão de vida ou morte.

Nossas vidas. Suas mortes.

Me desculpa se soou como ameaça. Mas é que ontem reli um poema meu e fiquei meio assim porque ele parecia bem desatualizado. Depois me liguei que não tá desatualizado de verdade, não… só pareceu (porque tem uns versos lá dizendo que “tanto faz ser muito rico/ [porque] a fome não é de pão” e que “se eu pudesse eu rimaria/ o amor com alegria/ comeria poesia mais do que arroz com feijão”). O caso é que tá osso, literalmente, a situação e, nesse momento, faz diferença sim ser rica ou não, porque sem dinheiro e sem solidariedade, não dá pra matar fome nenhuma. Como essas fomes não se saciam, ao contrário, aumentaram, temos uma multidão esfomeada, com corpos magros e corações feridos. Dez, por metro quadrado.

Aí fiquei brava comigo porque publiquei um poema frágil – há controvérsias, não nego… Daí depois me lembrei que é justamente por isso que eu nem gosto dele… Se chama “Poema sem título”, e é justamente por isso, por ser frágil, que ele não tem título e nem está terminado. Pode rir, mas é verdade…

E me desculpa, se soou como ameaça. Não era minha intenção. O que quero dizer, na verdade, é que dá tempo de a gente impedir mais desgraça. Dá tempo de colocar o país nos eixos, dar pão e dignidade a quem tem fome de pão e de dignidade, dar casa, saúde, educação a quem não tem sequer tempo pra sonhar com isso tudo.

E me desculpa, outra vez, se soou como ameaça. Eu só queria dizer que ainda dá tempo de exercer nossa humanidade e ajudar nosso povo preto, originários e pobres. Nosso povo, que é tratado feito bicho.

A gente ainda pode ajudar a resgatar a humanidade.

Toma o café e me desculpa, se soou como ameaça.


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS