Imprensa, fascismo e imagens de morte no Brasil e Palestina

É desnecessário mostrar mortes que vocês irão imaginar quando eu citar o fato. E eu preciso que vocês NÃO se fascinem com as imagens!

Por: Vinicius Souza*

Há cem anos não se via a ascensão global de uma Extrema Direita viável eleitoralmente. Em boa medida, essa expansão na última década em países centrais do chamado Ocidente como Estados Unidos, Reino Unido e França ou em periféricos como Argentina, Indonésia e Índia, foi impulsionada por imagens na mídia.  Por isso, contrariando uma prática de décadas, por eu ser um imaginador no sentido flusseriano da palavra, decidi não utilizar imagens visuais neste texto. Na verdade, faço isso também por várias razões muito importantes:

1º porque vamos falar de morte e a própria palavra imagem vem do substantivo latino imago, que significa máscara mortuária, a representação visual do rosto de um morto.

2º porque toda a indústria cultural tem abusado há décadas da massificação das imagens de mortes em filmes, vídeos e games, de certa forma dessensibilizando nosso olhar.

3º porque a mídia hegemônica brasileira, especialmente os programas policialescos vespertinos, banalizaram inclusive a morte ao vivo glamourizando ações violentas contra populações vulneráveis.

E 4º porque novamente estamos vivenciando um genocídio, uma limpeza étnica, mas que pela primeira vez na história é transmitida ao vivo pelas mídias terciárias numa crueza e alta definição imagética digital jamais vistas.

As duas principais razões, contudo, são que é absolutamente desnecessário mostrar visualmente imagens de morte que vocês provavelmente irão imaginar no momento em que eu citar o fato. E eu preciso que vocês NÃO se fascinem com as imagens, afetando seus centros emocionais mais básicos no modo de pensamento mágico-imagético-circular, para que compreendam de forma mais racional o que digo.

Dito isso, quero que vocês tentem lembrar como viemos parar nessa bad trip escrota” como bem definiam os rapazes do podcast Medo e Delírio em Brasília antes da vitória de Lula no segundo turno das eleições de 2022, e qual o papel os meios hegemônicos de comunicação em massa tiveram nisso. E aí temos dois movimentos opostos, mas complementares.

Enquanto a violência e as mortes da última ditadura civil-militar eram apagadas dos tribunais pela Lei da Anistia, e da imprensa pelos oligopólios familiares de beneficiários diretos dessa mesma ditadura; a morte de pretos, pobres, mulheres e LGTBQIA+ inundava de sangue os jornais e os programas populares, tanto na rádio como na TV. Esses movimentos foram essenciais entre os anos 1980 e 2010 para consolidar no imaginário da nação a falsa noção de uma guerra constante de vida e morte entre pobres ao invés da compreensão da verdadeira luta de classes entre uma pequena elite genocida e escravocrata e a imensa população trabalhadora que tenta sobreviver à opressão, ao descaso e à falta dos direitos mais básicos.

Vem daí a pesquisa de 2016 feita pelo Datafolha apontando que 57% da população concordava com a expressão “bandido bom é bandido morto” (Anuário, 2016), derivada da clássica máxima dos filmes de faroeste americano “índio bom é índio morto”.

Atualmente, temos também esfregados nas nossas caras os conceitos de Susan Sontag sobre as tragédias com as quais nos comovemos e os juízos de valores que temos sobre seus atores guiados pelas atenções da imprensa e grupos internacionais de lobby. No começo de julho, por exemplo, a Rússia afirmou ter sido um míssil de defesa ucraniano o responsável pela morte de 38 pessoas, sendo 4 crianças, no hospital pediátrico do Kiev.

Israel fez exatamente o mesmo acusando o grupo Hamas por ter lançado o foguete que matou centenas pessoas no hospital batista na Faixa de Gaza em outubro de 2023. Vocês sabem disso, mas, imagino, talvez não saibam que mês passado os Médicos Sem Fronteiras deixaram o Hospital Turco de Cartum, no Sudão, na esteira do fechamento de vários hospitais no país com bombardeios que deixaram centenas de mortos desde maio.

Especificamente sobre o Brasil, SIM, eu falei em escravidão e genocídio porque essa é a história da América Latina nos últimos 530 anos. Para não falarmos dos demais países da região e não nos alongarmos muito no tempo no Brasil, lembremos apenas do que ocorreu há meros 60 anos.

É importante lembrarmos da última ditadura porque ela é um caso clássico da instalação e consolidação de um regime fascista que por muito, muito pouco não se repetiu agora. Ou assim esperamos.

Senão vejamos: Como ensinou a professora Adriana Dias, principal pesquisadora brasileira de neonazismo, na série de quatro aulas livres que produzimos entre 20 e 28 de outubro de 2022 e disponíveis em diversos canais contra hegemônicos como os Jornalistas Livres, o GGN do Luis Nassif e o Iaras e Pagus, praticamente todos os regimes fascistas clássicos, como o italiano e o alemão das décadas de 1930/40, se instalam em momentos de crise criando um inimigo imaginário (sejam os judeus, os imigrantes ou os comunistas) responsável por todos os males.

Não é incomum que esses regimes se instalem até de forma democrática, ou simulando uma forma democrática. Em geral, contudo, eles levam quatro anos para dividirem totalmente a sociedade, tirarem as máscaras e se consolidarem como regimes de morte.

Em 1964, o STF aceitou a farsa da vacância na Presidência da República e a mentira de que o exército garantiria as eleições em 1966. O fim dos direitos individuais, a censura e a máquina de atentados terroristas atribuídos à esquerda, torturas, mortes e desaparecimentos, contudo, só se instalaria em 1968 com a promulgação do Ato Institucional Número 5. Aliás, o último signatário ainda vivo do AI5, o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto, foi enterrado esse mês louvado pela mídia sem nunca ter respondido pelos crimes resultantes do Ato.

Em Israel, depois dos acordos de paz assinados em Oslo em 1993 para uma solução de dois estados, em 4 de novembro de 1995 um atentado terrorista realizado pelo militante de extrema-direita Yigal Amir iria matar com dois tiros pelas costas o primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin, que assinara o histórico acordo, abrindo espaço para o genocida Benjamin Netanyahu.

O outro signatário dos acordos que poderiam por fim aos conflitos iniciados em 1948, com a fundação do Estado de Israel, era o líder da Organização para a Libertação da Palestina Yasser Arafat. Em novembro vamos completar 20 anos de sua morte, supostamente por lento envenenamento radioativo durante sua prisão domiciliar na sede do partido Fatah em Ramallah, na Cisjordânia ocupada.

Passados 31 anos do acordo nunca cumprido, a imprensa hereditária brasileira segue chamando aquele país de “única democracia do Oriente Médio”, mesmo com o apartheid claro, a ilegal política de ocupação de territórios palestinos e a limpeza étnica que seguem há 76 anos. NINGUÉM mostra como “Bibi” (fofo né?) chegou ao poder e como se mantém lá.

Mas a gente sabe bem como isso funciona, afinal, a mídia hegemônica brasileira teve papel preponderante na construção e manutenção da ditadura civil-militar, seja escondendo (com exceção do jornal Última Hora, que obviamente seria destruído pelo governo) a operação de genocídio pela polícia do Estado da Guanabara da população de rua entre 1962 e 1963 no governo do golpista expoente da extrema-direita Carlos Lacerda, seja cedendo os carros de entrega do jornal Folha de S. Paulo para o transporte de presos políticos já nos anos de chumbo.

Da mesma forma, nunca, nos anos que antecederam a eleição de Jair Bolsonaro, a imprensa deu destaque ao caráter abertamente nazifascista e genocida de suas relações e declarações. Até hoje existe uma espécie de proibição tácita em nomeá-lo de extrema-direita.

Quantos jornais deram realmente destaque às imagens de sua entrevista de 1999 em que ele diz que o “erro da ditadura foi torturar e não matar”? Na mesma entrevista, o ex-presidente, pregava um golpe de estado e uma guerra civil que mataria 30 mil, incluindo o então presidente Fernando Henrique Cardoso.

O fato é que não houve nenhuma repercussão midiática séria nem quando ele disse durante a campanha de 2018, que não entendia nada de economia pois, como capitão da artilharia, a sua única especialidade era matar. E assim foi também quando ele pegou o tripé de um cinegrafista para simular uma arma e conclamar seus apoiadores a “fuzilar a petralhada aqui no Acre”.

Outros candidatos alinhados certamente fizeram discursos semelhantes por todo o Brasil sobre os quais a imprensa simplesmente não falou nada. Querem ver? Muitos se lembram da cena dos hoje cassados deputados e governador Daniel Silveira, Rodrigo Amorim e Wilson Witzel em campanha em cima de um carro de som quebrando uma placa de rua com o nome de Marielle Franco, não é mesmo?

Ah, a maioria não lembra que o Witzel também estava em cima do carro de som? Interessante. E quem aqui lembra a frase sobre “sentar o dedo” nos vagabundos do Psol e do PCdoB? Só um lembrete: sentar o dedo não é na urna, é no gatilho. Tentem achar o vídeo completo no Youtube. Spoiler: não vai ser no G1, nem no UOL, muito menos que Estadão que vocês vão encontrar.

É preciso entender que diferente da imagem midiática de disputa política polarizada nas pautas ditas “de costumes” ou econômicas, o que se assistiu nos últimos anos foi uma polarização, na perfeita definição de Álvaro Borba, do Meteoro.doc, entre os que querem o direito de matar e os que querem o direito de não serem mortos. Isso é o nazifascismo que a imprensa nacional ainda se recusa a admitir e muito menos divulgar.

E sim, eu estou falando de nazismo. Eu poderia citar pelo menos 26 vezes em que o próprio Bolsonaro, seus filhos ou apoiadores e assessores diretos se vincularam ou emularam expressões, gestos, falas, slogans ou símbolos nazistas, incluindo o cartão de natal enviado em 2004 aos três principais grupos neonazistas de São Paulo e Paraná no qual o então deputado diz serem eles a razão da existência do seu mandato, como provado pela já citada antropóloga Adriana Dias. Mas o perfil do X, antigo Twitter, do Alexandre Falcão, @opigmeu, já fez isso.

Então vamos falar de morte, imagens e imprensa no nazismo brazuca atual. A primeira coisa que precisamos entender é que o fascismo se estrutura em cima de três pilares: o empresarial que faz as listas dos adeptos e dos contrários; o religioso que consolida a fé fundamentalista sem controvérsias; e a medicina que provê os métodos para o extermínio em massa.

E esses três pilares se utilizam, claro, das mais modernas tecnologias de comunicação disponíveis para inculcar a mensagem no imaginário coletivo. Como já dizia Freud em 1921, no clássico Psicologia das massas e análise do eu:

“Quem quiser influir sobre ela [a massa],

não necessita medir logicamente os argumentos;

deve pintar com imagens mais fortes,

exagerar e sempre repetir a mesma fala. (FREUD, 2011, p. 18).”

É importante lembrar, aliás, que o sufocamento é a forma clássica de extermínio em massa pelos nazistas.Nesse sentido, pode parecer que nada é mais simbolicamente representativo do nazifascismo brasileiro atual do que a imagem de Genivaldo Santos, uma pessoa com deficiência assassinada em Sergipe numa câmara de gás improvisada na traseira de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal em maio de 2022.

Mas talvez a coisa seja ainda pior. Diferente das referências explícitas às câmaras de gás nazistas da década de 1940, pouco se comparou as valas comuns para mortos pela Covid em Manaus com as valas para os judeus nos campos de concentração no leste europeu ou mesmo as valas no Cemitério de Perus para presos políticos e crianças vítimas da epidemia de meningite durante da ditadura.

Sobre a vala aberta no Hospital Al-Shifa, o maior da Faixa de Gaza, para o enterro de ao menos 179 mortos, sete deles bebês, então, nem pensar. Se, como diz Susan Sontag, imagens evocam imagens, porque a imprensa hegemônica não resgatou essas imagens e fez as devidas comparações? Será que a eugenia clara de Bolsonaro “com meu histórico de atleta, não preciso me preocupar” não era o suficiente?

E quanto à confissão do general-ministro da saúde de que o próprio cunhado precisava de oxigênio no início de 2021 em Manaus mas que ele não iria fazer nada? Iria simplesmente esperar?

Alguém por acaso deu destaque para a fala de Netanyahu em novembro passado citando o livro de bíblico de Samuel? “Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos” (I Samuel, 15:3). Quantos morreram sufocados por falta de energia elétrica para os respiradores em Al-Shifa? Quantos eram bebês?

O genocídio por sufocamento no Brasil com o explícito plano de contaminação em massa para criar uma suposta imunidade de rebanho que eliminaria os fracos, velhos e doentes preservando os “produtivos” para não parar a economia não soou nenhuma sineta nas centenas de editores de donos de veículos de comunicação em todo o país? Ou mais uma vez estão alinhados ao projeto fascista, ainda que também eles sejam vitimados no final?

Afinal, o nazifascismo não é somente assassino, ele também é suicida. Do contrário, como compreender a adesão massiva de grandes produtores rurais à política de queima das florestas que tem sufocado com fumaça tóxica essas semanas os moradores de 10 estados brasileiros e vai exterminar em poucos anos com o ciclo de chuvas essencial para o desenvolvimento do agronegócio? Tá quente hoje, né? Pois é, vai ficar pior. O agro não é pop, ele é fogo!

A única explicação talvez seja outra forma de sufocamento: o firehosing, que em português seria a mangueira de bombeiro mas que ao invés de apagar os incêndios, inclusive os florestais, inunda o ambiente comunicacional com uma enxurrada de mentiras impossível de ser detida, nos afogando em fake news.

Um exemplo é a repercussão midiática da mentira sobre os 40 bebês degolados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, que frequentou até mesmo a boca do presidente estadunidense Joe Biden, seguida por discretas notas de que “a informação não havia sido comprovada, mas também não havia comprovação em contrário”. Será que eu já não ouvi isso antes? Quantos foram os “de peito” assassinados entre os, até agora oficialmente, 48 mil palestinos mortos desde o início dos novos conflitos? Número que, segundo a revista The Lancet, pode chegar a 186 mil e segue crescendo.

Enfim, mesmo ainda sem termos nenhum general ou o ex-presidente preso por tentativa de golpe no Brasil, o cerco judiciário estava lentamente se fechando com a divulgação de fotos de joias desviadas do patrimônio público e imagens e áudios de reuniões onde se tratou abertamente de crimes como espionagem ilegal de adversários. Talvez o que faltasse fosse a fumaça de queimadas criminosas no interior de São Paulo cobrir STF e a PGR para ministros e procurador sentirem nos olhos, garganta e pulmão que o golpismo segue forte. Não falta mais.

 Além disso temos, claro, o fracasso eleitoral da extrema direita em Portugal, França e Inglaterra, apesar do sucesso no Parlamento Europeu. E com a saída de Biden da eleição nos EUA, a vitória de Donald Trump já não é mais uma certeza. Isso nos permite, por hora, respirar aliviados.

Tomemos fôlego então e não nos deixemos sufocar, seja pela enxurrada de imagens verdadeiras da tragédia cotidiana, seja pelos falsos inimigos imaginários criados pelo fascismo.

*Vinicius Souza é colaborador e co-fundador dos Jornalistas Livres. Professor de Jornalismo e de Pós-Graduação em Comunicação e Poder na UFMT. Autor do livro Quer que Desenhe? Imagens, fake news e mudança no modo de pensamento, Celacc-USP/Editora Casa Flutuante, 2023.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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