Mas como nem tudo na vida são flores, falo também de nós, da esquerda brasileira e daquela que parece ser a nossa grande derrota: perdemos a narrativa da denúncia e do combate à corrupção, uma narrativa que desde o início foi nossa, da esquerda.Uma narrativa que no século XIX foi formulada por Karl Marx.
Sim, amigos e amigas, o capital nos roubou a narrativa. Foi roubando assim, despacito, passo a passo. Não nos demos conta. Em algum momento, acreditamos que a narrativa do capital era a nossa narrativa. Acreditamos que a Operação Lava-Jato era republicana. Acreditamos que as delações premiadas seriam um instrumento utilizado pelas autoridades do Sistema de Justiça no combate aos crimes de colarinho branco.
Fomos tolos, muito tolos. Perdemos a narrativa. Perde o jogo quem perde a narrativa.
Começo pelo começo e o começo começa em Marx, no sistema de pensamento que até hoje é a melhor interpretação da modernidade. É que antes de ser o teórico da revolução dos trabalhadores, Marx é um intérprete da modernidade, o melhor que temos. Ninguém entendeu a modernidade tão bem quanto Marx.
Se fosse possível resumir o pensamento de Marx em uma sentença simples, rápida, eu diria assim:
O capitalismo inventou uma sociedade fundada na corrupção!
Ao longo de seus muitos escritos, Marx aborda a ideia da corrupção em duas perspectivas distintas, sendo que uma complementa a outra:
1°) A primeira abordagem tem teor mais filosófico e propõe uma definição para a natureza humana. Ultrapassando a tese iluminista de que os seres humanos são naturalmente racionais, Marx afirma que a natureza humana é fabril.
Ou seja, homens e mulheres são naturalmente vocacionados para o trabalho.
Mas que tipo de trabalho seria esse? O próprio Marx responde no capítulo VII do I volume do Capital:
“Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais que um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho, aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera: ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito.”
O trabalho que define a humanidade não é o trabalho meramente mecânico e repetitivo. É o trabalho livre, criativo, cujos resultados já estavam sendo imaginados pelo trabalhador antes de iniciado o processo de criação.
Na medida em que é fundado na exploração de uma classe social pela outra, o capitalismo corrompe a natureza dos seres humanos, de todos eles. O capitalismo, diz Marx, corrompe tanto a burguesia como o operariado.
A humanidade dos burgueses é corrompida porque sua posição de classe lhes permite o privilégio do ócio. O ser humano ocioso não trabalha e por isso tem a natureza da sua humanidade violentada, corrompida.
A humanidade dos trabalhadores é corrompida porque o seu trabalho não é livre, mas, sim, alienado. No capitalismo, o trabalhador trabalha em função das necessidades e dos desejos de outros.
O mundo novo, para Marx, alcançado após a Revolução, não seria o império do ócio, mas sim o reino do trabalho livre, onde todos pudessem desenvolver livremente todas as potencialidades de sua natureza fabril. No mundo novo, todos trabalhariam para satisfazer suas necessidades, tendo apenas os limites da natureza como força externa de regulação.
2°) O segundo tratamento possível que Marx deu à ideia de “corrupção” tem dimensão política e pode ser encontrado no livro “A Luta de Classes na França – 1848–1850”, publicados originalmente na forma de artigos na “Nova Gazeta Renana”, editada em Hamburgo.
Diz Marx que: “Enquanto a aristocracia financeira legislava, dirigia a administração do Estado, dispunha de todos os poderes públicos organizados e dominava a opinião pública pelos fatos e pela imprensa, repetia-se em todas as esferas, desde a corte ao Café Borgne, a mesma prostituição, as mesmas despudoradas fraudes, o mesmo desejo ávido de enriquecer não através da produção mas, sim, através da sonegação de riqueza alheia já existente.”