Carlinio França
Nos anos 80, do século passado, estudava na Escola de Belas Artes da UFBA e trabalhava no Banco Econômico, no meu fervor juvenil, já casado e pai, decidi bater às portas do PCdoB para militar e enfrentar a ditadura militar. Desde os 16 anos, já “frequentava” as manifestações da resistência aos golpistas, a minha primeira participação foi em uma passeata em apoio à greve dos operários em Contagem, Minas Gerais, duramente reprimida é óbvio, gostei da adrenalina e nunca mais parei, era meu destino vincular a vida à política.
Na EBA, totalmente sucateada e ameaçada pela reforma do ensino que pretendia eliminar os cursos de Humanas para prevalecer os cursos técnicos, e também, pelo Grupo Paes Mendonça que via em nossas instalações e da Escola de Teatro possíveis pontos comerciais, começamos a atuar no Movimento Estudantil, ter contato com os jornais que representavam as organizações políticas clandestinas, como Movimento, Inimigos do Rei, Tribuna Operária, dentre outros, vendidos discretamente por estudantes ou exibidos corajosamente na banca de revistas Graúna, de Getúlio e Nildão, ali na Rua Araújo Pinho e, através desses veículos, começou a paquera por um nicho que realmente fosse efetivo, atuante e que demonstrasse poder de ação certeira, além das análises teóricas.
E veio o Movimento Contra a Carestia, a luta contra o aumento das tarifas de transporte que arrebatou corações e resultou na maior revolta popular dessa Cidade, o quebra-quebra de ônibus, que durou duas semanas durante a primeira gestão do prefeito da época Mário Kértesz, (Anos depois, estavam ombro a ombro no processo de democratização do pais, tornaram-se grandes e respeitosos amigos).
E soubemos do Araguaia, do massacre da “Queda da Lapa”, das críticas ao revisionismo soviético e de uma visão Nacional, Popular, Democrática e Soberana para o Brasil. Não tive mais dúvida, ingressei nas fileiras do partido de Haroldo Lima!
Desde nosso primeiro contato fiquei marcado por sua capacidade intelectual e pelos seus discursos empolgantes e didáticos, ricos de citações históricas e também pelo seu aspecto físico: um homem que havia saído das prisões e torturas e vítima de um grave acidente automobilístico, com uma lente do óculos tapada, parecia realmente perigoso para os golpistas, e ter a força de um gigante, pelo tom de sua fala e pelo poder do seu nome de origem nórdica, que significa “comandante do exército”. Perfeito!
E a cada dia, essa percepção aumentava à medida que, não só o enfrentamento à ditatura, mas, principalmente ao “carlismo”, Haroldo Lima se impunha como liderança inconteste do campo da esquerda revolucionária e não articuladora do PT. A frase “O homem que ACM não gosta”, foi manchete nos diários quando o governador o comparou a um dirigente do PCB baiano, (isso ajudou a sua eleição a deputado federal constituinte), como troco, Haroldão retrucou: “ACM, o lambe botas dos generais”, quem esquece isso?
Em1987/8, lá vai nosso amigo brilhar na Constituinte, com amplitude, coragem e grande capacidade de articulação, cinco vezes eleito, e eu, atuando como designer de suas campanhas. Ele ia com Solange às minhas exposições, incentivava o artista iniciante, adquiria obras, divulgava os novos talentos.Nosso contato mais marcante foi quando os trabalhadores da empresa pública Coelba, por iniciativa de Marcelo Barreto, fizeram uma homenagem por seu aniversário e ele revelou em primeira mão a descoberta do Pré-Sal. Seus olhos brilhavam à medida que elencava os benefícios que se descortinavam para o país, e da sua cabeça de engenheiro, os números e os dados astronômicos dessa riqueza do nosso mar profundo e a genialidade da Petrobras. Durante o processo golpista que derrubou Dilma, articulamos uma entrevista quando vazou uma informação sobre uma articulação militar, eu fazia parte dos Jornalistas Livres, com Ernesto Marques, Walter Takemoto e Júlio Fischerman, nesta gravação precária e ainda inédita. Ficou evidente o patriota orgulhoso dos feitos no país a partir do Tenentismo, da industrialização, dos investimentos em pesquisa em ciência e tecnologia, do apoio à campanha “O Petróleo é Nosso”, não havia rancor algum no homem que foi barbaramente torturado, “A dialética é complexa, baixinho” dizia ele sempre. De maneira carinhosa.
Certa vez, em um encontro na sede do partido, onde estavam presentes Lídice da Mata, Javier Alfaya e Luiz Nova, discutimos quem seria o maior poeta da revolução, ele discordou de todos nós, que amávamos Vladimir Maiakovski, e meteu uma tese sobre Bertold Brecht, declamando um poema favorito.
Anos depois, tomamos um chop e ele me falou sobre sua luta para transformar os “poços maduros” em atividade produtiva visando beneficiar um número enorme de pequenos e médios industriais, para isso, enviou um jornalista aos EUA e dessa pesquisa deixou como legado na ANP um livro com farta documentação. “Nos Estados Unidos, se extrai petróleo nas calçadas das metrópoles, nos milharais nos quintais. “Tenho tudo documentado em um livro bem grosso, baixinho”, disse ele.
Perdemos o Pré-Sal, os militares de hoje não se equiparam aos que ele se referia na entrevista com distanciamento emocional e crítico. Estaria vibrando com o desfecho de ontem no STF, havia tomado a primeira dose da vacina contra esse vírus maldito, que pena, tenho certeza que em 2022 seria uma das vozes mais altaneiras do centenário do partido.
Um pouco antes da quarentena, encontrei o amigo tomando um açaí no bairro da Graça em companhia de uma das netas. Rolou um papo massa, como sempre acontecia, e um abraço forte. Essa é a imagem que vou guardar de Haroldo. Mais à frente, em algum outro momento mais seguro para todos, faremos uma grande e merecida homenagem pela pessoa humana e pelo homem público que foi. Quando pudermos nos abraçar, em breve, faremos ecoar juntos o nosso: ” Haroldo Lima, presente!”.