Alguma coisa acontece no Centro de São Paulo, mas as autoridades da cidade e do estado não estão informando ninguém sobre o movimento que retirou as pessoas em situação de rua do chamado “Fluxo”. A região ao lado da Estação da Luz, em pouco tempo viu “desaparecer” a centenas de barracas, colchões, cobertores que dividiam espaço com lixo, animais e frequentadores. Para onde foram as pessoas que viviam ali antes da inauguração, nessa terça 29 de março, de uma passarela ligando a estação à Sala São Paulo, espaço elitista de arte e cultura? Para tentar esclarecer melhor esse mistério, os Jornalistas Livres publicam com exclusividade os textos da jornalista e ativista de direitos humanos Valéria Jurado (@Valeria_Jurado6) e o ensaio do fotógrafo de arte e life style Alê Ruaro (@aleruaro) que desde antes da pandemia trabalham com a população em situação de rua auxiliando suas necessidades diárias e documentando sua luta pela sobrevivência. Acompanhem abaixo texto e fotos, sigam os dois nas redes sociais e contribuam no que puderem. Afinal, dos governos autoritários da cidade e do estado, não há muito o que esperar
Desde janeiro se intensificaram as operações da Polícia Civil na Cracolândia, chegando à prisão de 30 pessoas no dia 11 de fevereiro. A movimentação/migração, desde então, tem sido contínua do Fluxo para a Praça Princesa Isabel, onde antes, “moravam”cerca de 380 pessoas. Em épocas de pico, como no verão de 2021, a área cegou a abrigar mais de 500 pessoas. Hoje, porém, temos em torno de cinco mil pessoas no que já está sendo chamado de Novo Fluxo.
- Existem várias versões sobre os motivos, só não existe investigação séria oficial e transparente à sociedade:
- – PCC ordenou a desocupação porque não vai mais apoiar o Fluxo por brigas internas
- – PCC ordenou a retirada por não ter o lucro de antes
- – Acordo financeiro entre as polícias e os traficantes com a suspensão do “arrego” por um tempo em troca da mudança de endereço
- – Exigência do Governador em cima da Cívil para gravações de propaganda eleitoral dentro do futuro Hospital Pérola Byington e no entorno, mostrando como o Governador competente e higienista conseguiu acabar com a Cracolândia
- – Rebelião dos chefes do Fluxo que têm plano de migrar para local específico na rua Guaianazes, organizando uma grande marcha, uma espécie de protesto saindo da praça, que pode acontecer a qualquer momento
Nunca houve nada sério ou respeitoso em relação à Cracolândia. Os administradores nos últimos 30 anos nunca se interessaram ou tiveram competência para resolver a situação de um lugar tão vergonhoso. A “Maior Cracolândia do Mundo”, chegou a contar com 25 mil pessoas transitando diariamente. O tráfico as transações os chefes, tudo sempre feito às claras e sob os olhares das polícias.
No inverno rigoroso de 2021, bem no pico da pandemia, a coisa ficou escancarada. Dezessete moradores em situação de rua na cidade de São Paulo morreram de frio. Somente no entorno da Praça e do Fluxo, foram três. Até abril de 2021 ainda era possível ver o gramado da Praça. No mês seguinte o lugar estava tomado por dezenas de barracas cobertas com lona preta, na tentativa de amenizar o frio intenso.
Participei de várias ações ali, passei a conhecer as pessoas e suas histórias, arrecadei cobertores roupas refeições, a população estava num surto de generosidade.
Minha prioridade sempre foi das mulheres e seus filhos. Havia bebê recém nascido morando ali. Uma família, pai mãe duas filhas de 8 e 10 e um bebê de 2 meses, morando em 2 barracas iglu naquele gelo, era desesperador. Após inúmeras tentativas de exigir à Assistência Social uma vaga em CTA para a família toda reunida, sem sucesso, a Prefeitura de SP, separa ao invés de acolher a família unida. O pai voltou para outro estado com as meninas, a mãe ficou morando na praça com o bebê e somente no fim do ano o levou para a casa da avó. Essa mãe hoje se prostitui por pedras de crack. Ela tem 27 anos e zero esperança de um futuro digno.
Voltando à situação da Praça, os agentes da assistência social e médica não conseguem fechar a contagem porque estão impedidos de entrar no Novo Fluxo. Ficam dando voltas na Praça com pranchetas nas mãos, sem utilidade alguma. A Praça conta com apenas uma torneira/bebedouro de água da “rua”. Não existe banheiro. O que havia foi retirado e não consertado. No local, fizeram um jardim inútil. Existe uma base de alvenaria com sala grande e banheiro para a PM, uma quadra de esportes, equipamentos de ginástica para idosos e balanços para crianças. Os moradores da Praça criaram “banheiros” com buracos para as necessidades dentro de barracas de lona preta com chuveiros improvisados. Eles retiram as sacolas cheias de fezes e jogam no lixo. A Praça toda se torna um lixão a céu aberto quando a prefeitura fica mais de 15 dias sem enviar os caminhões da limpeza urbana e isso sempre parece uma espécie de punição ou método de repressão. O certo é que em dias de pilhas de lixo exposto é impossível ficar muito tempo por ali devido ao mal cheiro e à quantidade de insetos, com a grande possibilidade de contrair várias doenças.
A tragédia está acontecendo desde 19 de março, tem crianças de meses até 5 anos, mulheres grávidas, muitos cachorros filhotes, idosos incapacitados e deficientes físicos morando ali. Somando o Fluxo e tudo que ele traz de ruim, a qualquer momento pode ocorrer um motim, uma invasão das polícias ou uma briga entre usuários e transformar o lugar no palco de uma carnificina.
Até poucos dias dizia que ali era nosso campo de refugiados, em análise paralela à guerra na Ucrânia. Não digo mais! um campo de refugiados tem camas refeições remédios e ali não tem nada disso. Vou todos os dias à Praça levando tudo que consigo arrecadar, água (o ouro das ruas), roupas, mantimentos, ração, barracas… Com objetivo principal e urgente de retirar as mães com crianças, tenho falado com autoridades, implorado e até agora, nada.
A prefeitura envia uma van nas refeições com 1.500 marmitas para cerca de 5 mil pessoas. As ONG’s, quase à beira da falência, não conseguem dar assistência à quantidade absurda de pessoas.
O inverno se avizinha e pela experiência do anterior, as coisas vão piorar muito.
A Praça Princesa Isabel é uma panela de pressão prestes a explodir e tenho pena de quem estiver por perto.
2 respostas
Não tenho a mais vaga ideia, noção sobre o que é a situação dessas pessoas. Tristeza. Tristeza.
Nada como ler um artigo escrito por alguém que acompanha a angústia e o sofrimento dessas pessoas no dia a dia, tratando-os com o respeito e dignidade que merecem