Fontes, Falas e Alas

As narrativas dominantes construíram “alas” no governo de militares.

Por Marcelo Pimentel Jorge de Souza*, oficial do Exército na inatividade

As Forças Armadas (FA) adotam “manuais de campanha” que traduzem a doutrina dos conflitos modernos – caracterizados pelo “amplo espectro”, pelas “guerras híbridas”1 e pelo caráter “interagências” –, orientam a capacitação e organizam seu emprego em todos os níveis: político-estratégico, operacional e tático.

Manuais de operações de informação, psicológicas, dissimulação e inteligência trazem conceitos que podem ajudar o analista, especialmente o não familiarizado com habitus, campos e práticas2 próprios dos combatentes, a compreender o modus operandi dos militares que resolveram, na última década, reacender fenômeno sócio-histórico problemático – o protagonismo político de cúpulas hierárquicas das FA.

Tal fenômeno, resultante da ação liderada por grupo de oficiais posicionado no comando das Forças, evidenciou a radicalização dos processos de politização das FA – os militares – e de “militarização” da política e da sociedade, com dinâmicas peculiares aos partidos políticos e efeitos visíveis dentro e fora dos quartéis3.

Os generais e coronéis que governaram o Brasil até um mês atrás e ainda exercem papel relevante em governos, parlamentos, tribunais e no debate público, normalmente associados a polo político-ideológico de direita e extrema-direita, formaram-se e adestraram-se em técnicas e métodos preconizados naqueles manuais.

Narrativa dominante

Um desses – o de operações de informação4 – traz o conceito de “narrativa dominante”. Considerando que os conflitos militares possuem uma “razoável gama de atores relevantes atuando em espaço que vai além do campo de batalha”, a “dimensão informacional do ambiente operacional, em uma sociedade cada vez mais influenciada pela informação, reveste-se de destacada importância, uma vez que a percepção estabelecida como válida nas mentes de um ou mais públicos-alvo – a narrativa dominante – pode ser considerada um ponto decisivo nas operações militares contemporâneas e o ‘terreno’ informacional passa a ser tão importante quanto o físico e o humano”.

“Nesse contexto, a percepção que a população tem da realidade é de suma importância. Controlar a ‘narrativa’ é não apenas comunicar bem, mas comunicar primeiro e com mais e melhores informações”, entendidas como as que, mesmo inverídicas, concorrem para o êxito da operação e a conquista dos objetivos – políticos, “de guerra” e militares. Aliás, a verdade é a primeira vítima numa guerra, como disse Ésquilo, o “pai” da tragédia grega.

“A importância atribuída à opinião pública, portanto, pode transformá-la em um dos
Centros de Gravidade a ser conquistado em qualquer situação de emprego”. Entenda-se como “centro de gravidade o ponto central de todo o poder e de todo o movimento, do qual tudo depende”.

É assim que os militares atuantes no campo político consideram a opinião pública – alvo de uma “narrativa dominante” e “centro de gravidade” a ser considerado em suas atitudes e posturas políticas.

Condicionar a percepção de diversos públicos-alvo – dentro e fora da Força – foi essencial para transformar o “estorvo” do Exército nos anos 90 em “mito” nos anos 2000 e, a partir disso, fazê-lo candidato em 20145 e presidente em 2018 completamente aderido à imagem positiva das FA.

Bolsonaro e o general Villas Bôas. Crédito Redes Sociais

Grande parte da geração de companheiros do capitão Bolsonaro formada na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) nos anos 70 e 80 do século passado – que comanda o Exército na última década – passou a ocupar cabeça, tronco, membros, entranhas e alma da máquina governamental do Estado numa “marcha do quartel para o palácio” iniciada ainda em 2016 – generais à frente! Teria essa “marcha” alguma relação causal ou funcional com a “marcha do quartel para o palácio” empreendida pelos desvairados e delirantes “golpistas” no 8 de janeiro de 2023?

Fontes

Atuando em posições centrais e de grande exposição pública, generais, almirantes, brigadeiros, coronéis e comandantes, diretamente ou intermediados, “em on” e “em off”, passaram a servir de “fontes” privilegiadas para o jornalismo, fato muito compreensível exatamente por constituírem o núcleo político do governo.

Desacostumados a ver militares protagonistas políticos desde o final da Ditadura (1964-85), boa parte das análises na imprensa, academia e na própria política demonstravam surpresa com a ocupação massiva de postos de poder por militares. Como princípio ou método, dissimulação e surpresa são fatores essenciais para as vitórias nos teatros de operações. Diferentemente de boa parte dos generais da Ditadura, quase sempre carrancudos e avessos ao diálogo com a imprensa, os de hoje parecem afáveis, simpáticos, gostam de microfones e até buscam o contato com o jornalista.

Falas

Por isso, muitos formadores de opinião e “influenciadores”, com maior ou menor grau de consciência, foram usados como vetores para divulgação de dados, fatos e versões – “falas” – que ajudavam a conformar narrativas dominantes e facilitavam a conquista dos objetivos do projeto político daquele grupo militar. Numa espécie de “lavagem de informação operacional e funcional”, vestia-se aquelas “falas” com a roupa da “notícia de bastidor” ou da “inconfidência”, sempre muito atrativas para vender jornais ou apelativas para “viralizar” nas redes sociais, especialmente quando diziam respeito à figura central do palco político – o capitão Bolsonaro.

Alas

Assim, mesmo com milhares de oficiais das FA, até na ativa, exercendo o controle da “máquina” e distribuindo o poder, rapidamente se construiu e disseminou uma narrativa dominante que serviria, e ainda serve, como história de segurança e pano de fundo – conjunto de vieses de confirmação ou de oposição a esperar que novas “falas” ratificassem as percepções já esboçadas de certeza ou de dúvida: as “alas6 em disputa no governo. Muitos imaginavam que as disputas entre as “alas” poderiam enfraquecer o governo e o próprio campo político da direita.

Geratriz, referência e inspiração para outras disputas artificializadas ou potencializadas ao longo dos últimos quatro anos, a questão “ala militar vs. ala ideológica” pautou o primeiro ano do governo. Quase sempre apresentada como moderada e racional, a “ala militar”, da qual se destacava apenas a ponta do iceberg – uma dezena de militares em cargos de 1ª linha nos ministérios e estatais –, garantiria que o capitão Bolsonaro permanecesse controlado e afastado de intentonas golpistas ou desvios institucionais.

Por outro lado, haveria uma “ala ideológica” integrada por jovens civis que, sem medo de generais, teria laivos fascistas e atuaria sempre no sentido de uma ruptura ou erosão da ordem democrática – eram os “olavistas”.

Geralmente tolas e caricaturais, as frequentes polêmicas da “ala ideológica” ganhavam tal repercussão que mascaravam fatos importantes e extremamente significativos sobre e sob a superfície de observação comum – milhares de oficiais e praças ocupando amplos e profundos espaços de governo e de Estado: fazendo política; articulando o encaminhamento e aprovação das pautas que interessavam ao projeto político; treinando suas lideranças para novos desafios; adensando capitais políticos e simbólicos; e consolidando uma base eleitoral e militante a partir de um eixo central (militares da ativa e inativos) dinamizador de uma engrenagem de apoios e adesões na “família militar” e em seus entornos sociais.

Somente quem não conhecesse o pensamento político da massa dos generais e coronéis formados na AMAN nos anos 70 e início dos 80 poderia crer que eles próprios não constituíssem o núcleo e o motor ideológico do governo. Enquanto “ala ideológica” fazia a “finta” desencadeando o “ataque secundário”, atraindo a atenção da opinião pública mediada e não mediada pela imprensa formal, a “ala militar” atuava sobre o “centro de gravidade” daquela fase da operação, realizando o “ataque principal”, para conquistar o objetivo capital: ocupar, conquistar e manter o controle do Estado e estender pontes com
os formadores de opinião na imprensa tradicional para controle da narrativa.

Seja como antagonistas ou protagonistas, generais, almirantes e brigadeiros não saíram das capas e pautas jornalísticas nem um só dia. Entretanto, o que os levava ao centro do palco não era a Defesa Nacional, mas a política partidária e os assuntos civis do governo. Com eles, as próprias FA se transformavam em vitrine e foco da atenção de todos, ainda que, quase sempre, envoltas em mistério, desconhecimentos e dubiedades sobre o que são, o que pensam e o que podem fazer os integrantes de uma categoria referida superficialmente como “os militares”.

Disputas entre as alas

As disputas privadas entre as “alas” facilmente eram transformadas em acalorados embates públicos envolvendo seus representantes mais notórios. Logo no início do governo, o líder da “ala militar”, ex-comandante do Exército ocupando cargo de confiança no Gabinete de Segurança Institucional – general Villas Bôas –, e o líder da “ala ideológica”, atuando dos EUA – Olavo de Carvalho –, polarizaram todo o País, que, da esquerda à direita, passou a torcer para uma das “alas”.

A discussão “viralizada” no “teatro informacional de operações” serviu de cenário e viés de confirmação para se construir, por exemplo, a narrativa de que a demissão da dupla “Bebiano7 – general Santos Cruz” teria sido resultante daquela disputa e prova de que a “ala militar” era constrangida pela “ala ideológica”. Segundo se via em quase toda notícia sobre o tema, a família do capitão Bolsonaro seria pivô de episódios de traição e deslealdade envolvendo a presença de generais no governo, como se esses oficiais
houvessem se surpreendido com alegadas falhas de caráter do capitão.

Ocorre que todos os generais no governo conheciam o capitão Bolsonaro e sua família há mais de 40 anos, já que haviam convivido por quase 20 anos entre a formação na AMAN na década de 70 e as jornadas como capitães e tenentes, especialmente na Brigada de Infantaria Paraquedista sediada no Rio de Janeiro – base eleitoral dos “Bolsonaros” desde a década de 1980. Não há dúvidas sobre quem ganhou a “torcida” dos setores mais progressistas e democráticos da sociedade. Ambos – Bebiano e general Santos Cruz – foram acolhidos e receberam os “altos falantes” para proclamar aos quatro ventos a divisão do governo. No início de 2021, falou-se, até, numa chapa “Lula-Santos Cruz”8 . As “fontes falam”.

A partir de 2019

A narrativa de 2019 – “ala militar vs. ala ideológica” – evoluiu para uma suposta disputa entre “ala militar” e o “centrão” a partir de 2020 e, hoje, se desdobra em nova hipotética dicotomia, vendida em “prosa e verso” na imprensa, nas redes sociais e “confirmada” pela “tentativa de golpe de estado” no último dia 8 de janeiro e seus desdobramentos: “alas golpistas” e “alas legalistas” dentro da “ala militar” e, mesmo, dentro do próprio Alto Comando do Exército.

Dividir em “alas”, como espécie de wrestling show, “luta livre mexicana” ou o conhecido telecatch, ajuda a controlar as narrativas. Aliás, é a essência de uma boa narrativa dominante.

Tanto em 2019 quanto agora, as “alas” funcionam, também, como espécie de válvula de escape ou controle de danos, automática ou manual. Por exemplo, caso o governo vá bem, terá sido em decorrência da moderação e controle da “ala militar” sobre as aleivosias antidemocráticas de um capitão Bolsonaro sujeito às ações do “olavismo” e dos maus conselhos de seus círculos familiares “ideológicos”.

Caso o governo vá mal, certamente será pela ação dos “aloprados” da “ala ideológica”, que “humilham” generais e lhes tiram espaço no governo, influenciando o “capitão golpista”.

Caso haja um “orçamento secreto” que caracterize o “toma lá, dá cá” para aprovação de pautas com fins eleitoreiros ou corporativos, será pelo fato de o “centrão” ter tomado os espaços da “ala militar” na direção política do governo.

Não se pode esquecer que o presidente era um capitão do Exército formado na AMAN em 1977 e o vice, um general do mais alto posto formado na AMAN em 1975, ambos da arma de artilharia, paraquedistas e colegas em unidades da Vila Militar no Rio de Janeiro. Aliás, o próprio “toma lá, dá cá” materializado pelo caso das “emendas do relator” foi coordenado por um general na ativa, autorizado pelo Alto Comando do Exército, em 2019, a exercer um cargo intrinsecamente político – o de ministro da Secretaria de Governo (SEGOV).

Caso ocorra um “golpe” ou tentativa de um, terá sido pela “ala golpista” das FA “cooptada” pela “ala ideológica” dos “olavistas” no governo. Caso não ocorra, será resultado da ação firme e legalista da “ala democrática” do Exército.

O próprio vice-presidente assumiu, em versão pessoalizada das “alas”, um polo antípoda ao do presidente em diversos aspectos, geralmente sendo apresentado como o “moderado” na relação supostamente difícil entre os dois. Hoje, o general é senador e líder da bancada do “partido militar”9 no Congresso. O ex-capitão Tarcísio, companheiro de “motociatas” do capitão Bolsonaro, é governador de São Paulo. O general Pazuello, companheiro de palanque do presidente, ainda quando estava na ativa do Exército, será atuante deputado de oposição. Enquanto isso, o presidente parece buscar um país para
morar.

Bolsonaro leva na garupa o atual governador de SP, Tarcísio de Freitas. Crédito Redes Sociais

Dissidências

A formação de “dissidências” – falsas, forçadas ou naturais – também segue a lógica das “alas”. Além dos já citados Bebiano e general Santos Cruz, o ex-juiz e atual senador Sérgio Moro é um de vários outros exemplos. Resultado prático e muito claro dessa estratégia está no aumento da bancada dita conservadora no Congresso Nacional. As “alas”, todas elas, foram eleitas e reeleitas com ainda mais amplitude e profundidade que em 2018. As “dissidências”, na verdade, funcionaram como “amplitude de frentes de combate” no terreno informacional e, claro, da política-eleitoral. No campo da direita, a divisão resultou em fortalecimento eleitoral. No da esquerda, impelida a se deslocar à direita, a divisão parece ter o efeito contrário, seguindo a tendência histórica.

Como diz Clausewitz em sua obra seminal10, “o efeito de névoa” do combate “dá as coisas dimensões exageradas e aparência não-natural”. No caos de informações ou nas certezas absolutas é que surgem as luzes para guiar caminhos. Agora que o (e)leitor já foi introduzido a um dos aspectos do teatro de operações informacional – a narrativa dominante –, seria sensato não se deixar levar, sem reflexões, por fachos disparados pelos mesmos que apagaram as luzes. Os caminhos mal iluminados podem conduzir a novas trevas.

O pensador prussiano também ficou famoso pela ideia – um tanto incompreendida – de que a guerra seria a continuação da política por outros meios. Alguns podem achar que a atual versão do protagonismo político das cúpulas hierárquicas das FA se caracterizaria pela ideia complementar de que a política exercida por generais seria a continuidade da guerra por outros meios. A questão não é esta somente, mas saber quem, de fato, se considera “o inimigo” num e noutro caso – na guerra e na política.

Ainda falta explorar as operações psicológicas, de inteligência e as dissimulações nas estratégias que caracterizam a nova versão do protagonismo político das cúpulas hierárquicas – anacrônico, impróprio, insensato, indevido, anti-histórico e, às vezes, expresso ilegalmente.

Dessa vez, tal protagonismo não resultará em golpe de estado, embora se valha da narrativa dominante de golpe. O golpe – rompimento institucional – é golpe – ato de ludibriar. A continuação da explicação fica para uma próxima oportunidade. Por enquanto, é bom não cair em golpes.

– – – –

*Marcelo Pimentel Jorge de Souza, oficial do Exército na inatividade.
Mestre (stricto sensu) em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do
Exército

Referências

1 Sobre “guerras híbridas”, uma boa leitura é a obra do antropólogo Piero Leirner – “O Brasil no espectro
de uma Guerra Híbrida” (Alameda, 2ª edição, 2022).

2 Habitus, campo e prática são conceitos da teoria sociológica de Pierre Bourdieu.

3 Sobre os processos de politização das Forças Armadas e militarização da política e sociedade na visão de um oficial do Exército, obra “Os militares e a crise brasileira” (org. João Roberto Martins Filho, Alameda, 2021), capítulo “A palavra convence e o exemplo arrasta (autoria de Marcelo Pimentel Jorge de Souza).

4 BRASIL. Exército. Estado-Maior. Manual de Campanha – Operações de Informação – EB70-MC-10.213 –
2ª Edição, Brasília, 2019.

5 O lançamento da candidatura presidencial do então deputado Bolsonaro, na AMAN, pode ser visto neste vídeo de novembro de 2014 https://youtu.be/MW8ME9S87SI

6 Conceitos de “cismogênese” desenvolvidos pelo antropólogo britânico Gregory Bateson (1904-1980) teriam sido aplicados por agentes estatais em tentativas de “polarizações” sociais úteis para objetivos políticos e militares.

7 Falecido em março de 2020, pouco menos de um ano após deixar o governo. A saída do então ministro
abriu uma “crise” no PSL, já que tinha sido um dos viabilizadores da disponibilização do partido para a candidatura do capitão Bolsonaro em 2018. Formou-se, a partir desse episódio, uma outra disputa em “alas”: o “PSL” e os “bolsonaristas”, que iniciaram, esses últimos, a migração para outras siglas partidárias
até concentrarem no PL para as disputas eleitorais em 2022.

8 De acordo com “notícia de bastidor” – “fontes que falam” – obtida pela jornalista Rosângela Bittar, de O
Estado de São Paulo. https://www.estadao.com.br/politica/rosangela-bittar/enquanto-isso/

9 Sobre a apresentação do conceito de “Partido Militar”, ver a obra “Os militares e a crise brasileira” (org. João Roberto Martins Filho, Alameda, 2021), capítulo “A palavra convence e o exemplo arrasta (autoria
de Marcelo Pimentel Jorge de Souza). Conceito: “Grupo informal, coeso, forte, hierarquizado, disciplinado, com características autoritárias, e dirigido por cúpulas hierárquicas – generais e coronéis – formadas na AMAN nos anos 70/80 que, instrumentalizando as Forças Armadas – seus integrantes, estruturas e família militar –, se organizam e articulam para a conquista do poder e seu exercício, radicalizando, ao fazê-lo, os processos de politização das Forças Armadas/dos militares e de militarização da política/da sociedade. Esses processos constituem o substrato fenomenológico, de natureza sóciohistórica, do protagonismo político das cúpulas hierárquicas das Forças Armadas”.

10 CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. Martins Fontes. 3ª edição. 2010.

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JORNALISTAS LIVRES ENTREVISTA: Marcelo Pimentel]

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