Filme desmascara proibição ilegal de partos

Filme desmascara proibição ilegal de partos em Fernando de Noronha

Uma famosa voz off, que serve de locução palaciana aos comunicados e peças ideológicas da ditadura militar de 64, anuncia o fabuloso empreendimento de Fernando de Noronha, no litoral de Pernambuco. Frases triunfantes, como “Aqui, no paraíso, nasce o futuro, a esmeralda do turismo”, denunciam o projeto exploratório, que chega para tomar e lucrar, sem se importar com o que pensa a população local, como mostram as cenas recuperadas pelo filme documentário Proibido nascer no paraíso, da premiada Joana Nin. A comunidade nascida no arquipélago, que assiste às promessas eufóricas desse empreendimento, começa, sem o saber, a sofrer aí o seu processo de desaparecimento. O veredito desse “extermínio natural” em favor da empresa do turismo foi dado há 17 anos pelo fechamento do setor de maternidade do hospital local e por uma espécie de “golpe no ventre livre e nos nascituros”. 

Desde então, o governo de Pernambuco colocou em prática um “pacto de Herodes”, com a adesão da administração local e de profissionais do sistema de saúde, para que as cidadãs noronhenses grávidas sejam impedidas de terem seu parto no lugar onde nasceram. Por essa manobra abusiva, sem amparo em lei, seus filhos ficam interditados ao direito à terra. Em algumas décadas, quando todos os moradores antigos tiverem morrido, os noronhenses terão desaparecido e o paraíso estará totalmente livre para os projetos turísticos.

Em sua primeira visita a Fernando de Noronha, a documentarista Joana Nin ficou intrigada com uma frase que ouviu: “Aqui é proibido nascer”. Ao investigar a afirmação, descobriu que as grávidas são obrigadas a deixar a ilha 12 semanas antes do parto para ter seus filhos em Recife, que fica a uma hora e meia de voo. Na Ilha até existe um hospital, mas deixou de realizar procedimentos obstétricos há quase 17 anos. Conversando com pessoas da comunidade, a diretora compreendeu que, para os moradores mais antigos, o motivo da suspensão dos nascimentos foi evitar que os bebês reivindiquem direito à terra no futuro.

Acontece que, como a legislação configura a área como terras públicas, os terrenos são concedidos por meio de um Termo de Permissão de Uso, documento cobiçadíssimo num arquipélago onde cada palmo de terra vale mais que esmeralda, para usar o linguajar da ditadura. “Nascidos em Fernando de Noronha teriam direito a solicitar a inclusão de seu nome numa lista do programa de habitação local, em busca do mesmo espaço disputado por empresários do turismo”, explica a diretora. Por isso, a possibilidade de direito à moradia própria para os que nascem é abortada desde a gestação numa ilha que, como mostram seus canhões e prédios históricos, já serviu de presídio político e base militar durante o Estado Novo (1937-1942) e, outra vez, no período da Guerra Fria e da ditadura (entre 1958 e 1967). Até 1988, antes de se tornar território de Pernambuco, foi administrada por militares, quando soldados brasileiros e estadunidenses monitoravam qualquer movimentação por céu ou por mar e talvez venha dessa história belicista a política de tudo vigiar e controlar, desde o ventre das mulheres.

Mães e filhos expulsos do paraíso para que ninguém mais nasça no local

Da revelação estarrecedora nasce o filme documentário, rodado entre 2017 e 2019, que acompanha a angústia e a luta de três gestantes, trabalhadores de origem humilde, duas delas negras, cujo desejo é dar à luz no local onde moram e trabalham, perto de seus familiares. Suas famílias vivem em Noronha há décadas, mas elas são obrigadas a realizar seus partos longe da comunidade, por essa ordem cumprida à força de perseguição institucional, coação psicológica e abuso de poder econômico, médico e governamental.

Os acontecimentos constroem em cena a denúncia silenciosa e contundente sobre a sabotagem de um direito natural. O cotidiano de Ione, Harlene e Babalu, que vivem sob a sentença de uma expulsão temporária, no momento mais sensível de suas vidas, dá os contornos cruéis dessa ordem. Ela não cessa de causar indignação, revolta ou triste conformismo a cada mulher que carrega no ventre, como uma Matrioshka (ou uma Babuska), não apenas o futuro da vida de um ser, mas a promessa de sobrevivência de uma comunidade inteira. A tapioqueira negra Babalu, filha de três gerações de mulheres noronhenses, vive sentimentos contraditórios entre a confiança em sua luta para manter a tradição de suas antepassadas, mudando o destino traçado pelos homens de negócios, e o conformismo da desesperança diante de todas as negativas que recebe.

Assista o debate pelo Youtube:

Lançamento incedeia debates sobre direitos da mulher no parto

Longe de ser uma bizarrice, a proibição do nascimento em Fernando de Noronha representa um modelo extremado de onde podem levam os abusos de poder contra os direitos e o protagonismo da mulher sobre a gravidez e o parto. Os Jornalistas Livres aproveitam o lançamento do filme documentário para aprofundar essa discussão, promovendo um debate no dia 5/5, às 17 horas, a ser transmitido ao vivo e on line em todas as suas plataformas (Youtube, Facebook e Twitter). Dividido em dois blocos, ancorados pela jornalista livre Raquel Wandelli e a documentarista Joana Nin, o painel trará seis das mais expressivas e qualificadas lideranças e pesquisadoras femininas na área.  

Além da diretora, participam do debate Fabiana Leite Domingues, advogada, professora universitária e presidenta da Comissão da Mulher Advogada daOAB de Pernambuco; Maísa Oliveira, promotora de Justiça de Cidadania (Defesa do Direito à Saúde), idealizadora do Projeto Humanização do Parto do Ministério Público de Pernambuco, integrante do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo; Daphne Rattner –  médica epidemiologista, e professora da Universidade de Brasília, presidenta da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (ReHuNa); Maria do Carmo Leal, epidemiologista e pesquisadora Sênior da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, que coordenou o primeiro Inquérito Perinatal Brasileiro e o primeiro Censo Nacional sobre a Saúde Materno Infantil no cárcere – Nascer nas Prisões e Esther Villela, médica obstetra, integrante da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, ex-coordenadora nacional da saúde das mulheres e da Rede Cegonha (MS).

“Palácio” controla passos da mulher noronhense desde que engravida

Mães privadas do direito de ter filhos no lugar onde nasceram, filhos privados do direito à terra e moradia

Proibido nascer no paraíso mostra como num lugar onde a administração exerce o controle sobre a população de origem as mulheres perderam o poder sobre seus próprios corpos. O filme mostra que, desde a notícia da gravidez, a mulher noronhense é enredada numa malha de vigilância exercida pelo poder médico e administrativo. Essa perseguição velada e disfarçada começa quando a mãe vai ao posto de saúde fazer o pré-natal e já recebe informações sobre a proibição e sobre a obrigatoriedade de se retirar da Ilha antes do parto.

A partir daí, seus passos são seguidos e ela recebe telefonemas se, por exemplo, não comparece a uma consulta, alertando-a de que o filho não pode nascer na ilha, sob o argumento de que terá de assumir sozinha todos os riscos. Com isso, a tradição de parteiras e o direito ao parto humanizado também são desrespeitados.

O percurso das gestantes no espaço e no tempo do documentário mostra claramente que essa proibição se apoia na intimidação psicológica das gestantes. Elas são levadas a barganhar a proximidade do afeto e o direito ao lugar pela perspectiva de conforto numa passagem de avião e numa hospedagem de hotel custeada pelo governo de Pernambuco para ter o filho em Recife, com o acompanhamento necessário.

Para realizar o filme, a equipe precisou conhecer as peculiaridades geográficas e administrativas da ilha, que tem cerca de três mil moradores, segundo estatística do IBGE de 2020. Fernando de Noronha compõe um território com uma lógica própria dentro do Brasil: não se trata de um município, mas de um distrito estadual de Pernambuco, cujo administrador ocupa um cargo nomeado pelo governador, assim como todo pessoal de apoio. A única instância local com eleição democrática é o Conselho Distrital, que não tem função legislativa. “Até hoje, a ilha funciona, de certa forma, como um presídio ou um quartel, onde a população permanece tutelada”, observa Joana.

A questão de Fernando de Noronha torna-se reveladora nesse sentido. “A mulher sequer é considerada, parece ser propriedade de terceiros. Isso tem a ver com um movimento iniciado na década de 1940, quando a gestação passou a ser um tema médico, equiparado a uma doença, e não mais um assunto feminino familiar, como era até então.” A direção do projeto levou a cineasta a perceber como o controle externo da gravidez invisibiliza o desejo da mulher. “Nós nos tornamos transparentes no dia em que as outras pessoas tomam conhecimento de que temos um feto dentro de nós. Ele ainda não é um bebê, não tem vontade própria nem personalidade formada, não fala nem se expressa, mas nossa barriga passa a ser sempre o primeiro e o último foco do olhar de quem nos vê de fora.”

Tudo é controlado pelo “Palácio”, como os moradores chamam a sede da administração na ilha, conta a diretora. E assim ocorre com a política habitacional. Uma vez que nenhuma propriedade pode ser comprada ou vendida, moradores permanentes – com mais de 10 anos de ilha – têm “o direito” a inserir o nome em uma lista e a esperar pelo recebimento de um terreno, ou de uma casa. Como trazer essa proibição à tona interessa aos moradores e moradoras locais, toda a comunidade contribuiu no levantamento de informações, em grande parte camufladas, contraditórias ou obscurecidas.

O documentário aponta como o turista pode ser afetado pelo mesmo drama dessas gestantes. Até porque também faltará atendimento emergencial a ele, caso precise. “É triste pensar isso, mas os visitantes têm muito mais poder de barganha do que as mulheres da comunidade”, observa Joana. Como a diretora e o seu filme mostram, as condições precárias do hospital local, o São Lucas, atingem não apenas as gestantes, mas também os turistas, pois a instituição não está preparada para qualquer intervenção que dependa de um centro cirúrgico, anestesista, banco de sangue, UTI ou qualquer outro tipo de atendimento para além do básico. “Isso faz sentido numa ilha de turismo-aventura, que fica a uma hora ou mais de voo do continente? Não faz. Um local com arrecadação própria, inclusive. É preciso pensar melhor essa estrutura, e também admitir o direito mais do que legítimo de as mulheres parirem perto de casa.”

As autoridades alegam que o número de parturientes é pequeno para a abertura de uma maternidade, e que nem todas fazem questão de ficar. Contudo, as gestantes argumentam que seria mais barato e mais eficiente manter uma sala de parto, como existiu até 2004, com atendimento obstétrico e uma emergência geral melhor aparelhada do que bancar sua estada forçada em Recife por quatro ou mais meses, de acordo com o estado da mãe e da criança.

Babalu lutou para seguir trajetória das mulheres da família, mas também foi expulsa da ilha onde nasceu e teve que parir na cidade

O filme faz sentir na pele o desrespeito dos direitos sobre o parto e a maternidade, mostrando uma realidade levada ao extremo, na qual os poderes constituídos conseguem proibir de fato que mulheres escolham onde e como querem ter seus bebês. Essa conjuração do direito feminino foi institucionalizada há quase duas décadas, embora não exista nenhuma lei determinando que assim ocorra. Joana explica que a mentalidade local é de que as coisas “são assim porque são, e que não se pode mais mudar”, mas ela também crê que Proibido nascer no paraíso pode sensibilizar e transformar. “Espero que o filme contribua de alguma forma, para a reflexão e transformação desta realidade; para que os atos de gestar e parir sejam universalmente mais respeitados no futuro, não apenas em Fernando de Noronha.”

Produtora publica site com relatos de mulheres sobre seus partos

Cena do filme em que mulheres são obrigadas a deixar a Ilha para terem seus filhos

Desde maio de 2020, a produtora Sambaqui Cultural vem realizando sessões fechadas online com públicos estratégicos ligados diretamente ao tema gravidez e parto, ou ao direito da mulher, sempre seguidas de debate com a diretora e equipe. Até o momento, já foram mobilizados 16 parceiros, como OAB Mulher, Grupo Curumim, Rehuna, Instituto Aurora, CLAM (Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos) entre outros públicos qualificados.

Produção da Sambaqui Cultural e lançamento no Brasil pela Boulevard Filmes, Proibido Nascer no paraíso tem foco na construção de um relacionamento empático com ativistas e pessoas engajadas nas causas que envolvem o direito ao parto e ao corpo, antes de chegar às salas de cinema. Para o lançamento, a equipe preparou um “barrigaço do mês das mães”, com templates e convites para mulheres de todo o Brasil contarem sobre como tiveram, ou não, as suas escolhas de parto respeitadas. A coletânea de depoimentos será postada nas redes sociais do filme. Todo esse histórico, assim como o debate ao vivo e online que os Jornalistas Livres transmitem através de suas plataformas na quarta-feira (5/5) poderá ser encontrado também nos arquivos da produção em https://linktr.ee/proibidonascernoparaiso.

Ficha Técnica

Produção – Joana Nin e Ade Muri

Direção – Joana Nin

Ano –2021

Duração –78 minutos

Classificação indicativa – Livre

Estreia – no Globoplay em 1º de maio, e no GNT no dia 5 de maio, mês das mães

Assista ao trailer: bit.ly/pnnp_trailerFotos:https://1drv.ms/u/s!AuE8oJHSrL6Ug_t9ZzQwh3ARxTbcbA?e=L8sHBW

As pessoas não deveriam ter o direito de onde e como parir?

Apresentação das debatedoras: 5 de maio, às 17 horas, nas plataformas dos Jornalistas Livres

Joana Nin – Diretora e produtora do documentário longa-metragem Proibido Nascer no Paraíso. É jornalista de formação e cineasta. Está lançando o sétimo filme por sua produtora Sambaqui Cultural.

Fabiana Leite Domingues – Advogada da área cível, de direito da família e sucessões, mestra em Direito, professora universitária, conselheira estadual da OAB/PE e presidenta da Comissão da Mulher Advogada da OAB PE. ( Presidenta da CMA da OAB/PE)

Maísa Oliveira – Promotora de Justiça de Cidadania (Defesa do Direito à Saúde) com atuação em Olinda-PE, idealizadora do Projeto Humanização do Parto do Ministério Público de Pernambuco e integrante do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo do MPPE.

Daphne Rattner –  médica epidemiologista, e professora da Universidade de Brasília, presidente da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento – ReHuNa e integra a diretoria da International MotherBaby Childbirth Organization. Organizadora do livro Humanizando Nascimento e Partos

Maria do Carmo Leal – Pesquisadora Sênior da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, epidemiologista, com estudos na área da Saúde da Mulher, Criança e Adolescente, tendo coordenado o primeiro Inquérito Perinatal Brasileiro, denominado Nascer no Brasil e o primeiro Censo Nacional sobre a Saúde Materno Infantil no cárcere – Nascer nas Prisões. Coordenou vários projetos de pesquisa com financiamento nacional e internacional. Publicou mais de 200 artigos em periódicos científicos e orientou 50 trabalhos de mestrado e doutorado concluídos.

Esther Villela – Medica obstetra, integrante da rede feminista de Ginecologistas e Obstetras. Mestre em saúde da mulher e da criança. Foi coordenadora nacional da saúde das mulheres e da Rede Cegonha (MS) no período de 2011 a 2017.

Joana Nin
Fabiana Leite
Maísa Oliveira Melo
Daphne Rattner
Marisa do Carmo Leal
Esther Vilela

Diretora ganhou 21 prêmios com longa e curta enfocando mulheres de presidiários

Produtora e diretora Joana Nin

Atua há 20 anos na área audiovisual. Com “Proibido nascer no paraíso”, documentário sobre parto e direito de escolha da mulher, ambientado em Fernando de Noronha/PE, lança seu segundo longa. Em 2015, lançou o primeiro, “Cativas – presas pelo coração”, uma coprodução com o GNT, exibido em salas de cinema depois de receber uma menção honrosa do júri do Festival do Rio 2013 e participar de eventos internacionais. Iniciou sua carreira no cinema em 2005 com “Visita íntima”, eleito melhor curta brasileiro do É Tudo Verdade 2006 e vencedor do Kikito de prêmio especial do júri, além de outros 19 prêmios. Dirigiu ainda, entre outros, os telefilmes Ultra Bebê e Meu Bebê Reborn, lançados em 2018 no GNT. Tem mais dois longa-metragens a caminho, “A Vila dos Três Apitos”, documentário sobre Noel Rosa e suas inspirações, e o telefilme  “Os  80  Gigantes”,  sobre  uma  companhia  de  teatro  do  Paraná,  ambos em  fase  de filmagens, interrompidas pela pandemia.

Filmografia

Proibido Nascer no Paraíso / 2021 / longa doc / 78’

Ultra Bebê / 2018 / telefilme / 52’

Meu Bebê Reborn / 2018 / telefilme / 52’

Cativas – presas pelo coração / 2015 / longa doc / 77’

Rio de Bicicleta / 2015 / websérie / 26 ep x 3 a 5 ‘

Uma Gôndola para Nova Veneza / 2014 / telefilme / 53’

À Luz do Dia/ 2013 / curta doc / 7’

Visita Íntima / 2005 / curta doc / 15

Documentário mostra trajetória de trës mães obrigadas a sair da ilha 12 meses antes do parto para que turismo sabote direito à terra e extinga população original

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS

Na contramão do parto humanizado

  A violência obstétrica, parceira de mulheres pobres e negras, na verdade não escolhe alvos quando se trata do sistema público de saúde. É o