Ezequiel: a glória de Javé com os deserdados da terra?

Frei Gilvander Moreira¹

No ano de 2024, em setembro, mês da Bíblia, Ezequiel será o Livro da Bíblia a ser refletido para animar a caminhada das Comunidades Cristãs. Nós do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI/MG) produzimos um livro Texto-base e uma Cartilha para alimentar a caminhada libertadora, ecumênica e interreligiosa na construção de uma sociedade justa economicamente, solidária socialmente, sustentável ecologicamente, democrática politicamente e responsável socialmente e geracionalmente. Eis um segundo pequeno texto que disponibilizamos.

Ao lermos os textos bíblicos temos que, com interpretação justa e sensata, encontrar instrumentos para enfrentarmos as opressões políticas, as explorações econômicas e também as idolatrias religiosas. Não podemos aliviar e nem amenizar a exploração perpetrada pelo poder religioso que em muitos casos oprime e mata mais do que os poderes políticos e econômicos. 

Não podemos ler o livro de Ezequiel fora do contexto de disputa pela terra (cf. Ez 11). “Foi a nós que Deus deu a terra” (Ez 11,15), alegam o “resto do povo” que ficou na terra sem-terra e também os deportados para a Babilônia. Embora Ezequiel afirme que a “glória de Javé” está com os exilados na Babilônia – a “glória de Javé deixou o lugar” (Jerusalém) (Ez 3,12; 9,3) – temos que ter a perspicácia de perceber que a “glória de Javé” esteve, está e estará sempre com os deserdados da terra, com o “resto” que ficou abandonado na Palestina, sem-terra, sem templo, sem profetas, sem referências, sem lideranças, amargando as agruras de um brutal exílio na própria terra.

 O livro de Lamentações, em cinco capítulos, narra em forma de súplica a brutal catástrofe a que o povo foi submetido após a cidade e o templo de Jerusalém terem sido destruídos, por volta do ano de 587 antes da era cristã (a.E.C.): fome, sede, matanças, incêndios, saques e exílio forçado (cf. 2Rs 24-25) era a desolação que deixou a esperança viva por um fiapo. Mostram o povo em situação de quase desespero, que perdeu tudo, menos a fé que insiste em gritar que Javé é “Senhor da história”, não abandona o povo e não tardará em manifestar sua glória. Miséria e aflição. “Até as crianças são escravizadas” (Lm 1,5) e mortas, como no caso do genocídio que o Estado de Israel está fazendo há 76 anos do povo palestino. “Javé, olhe o nosso sofrimento e o triunfo dos nossos opressores!” (Lm 1,9). “Gemendo, o povo clama por pão” (Lm 1,10). “Olha, Javé…!” (Lm 1,11). Não nos abandone. “Nossos olhos se derretem” (Lm 1,16) de tanto chorar. No fundo do poço, o povo esmagado refaz sua experiência de Deus, busca sua humanidade mais profunda e percebe que, acima de tudo, Deus é amor, misericórdia. “A compaixão de Javé não se esgota” (Lm 3,22). “Javé é bom para quem nele confia” (Lm 3,25). “Javé se compadece segundo sua grande bondade” (Lm 3,32). No fundo do poço, em sofrimento extremo, o “resto” do povo sem-terra, exilado na própria terra, reconhece a presença de Deus como companheiro de caminhada. Eis a “glória de Javé” com os povos violentados de forma brutal que, como “resto”, ficou jogado às traças exilado na própria terra. 

O livro de Ezequiel é livro construído na diáspora, trazido do exílio pelo sacerdote Esdras, pelo menos os capítulos 40 a 48. Em Ezequiel a teocracia se constitui com o sumo-sacerdote que representa Javé. Ao longo da história as muitas versões de “teocracia” trouxe vários tipos de idolatria para dentro das igrejas e para o seio da sociedade causando estragos vexaminosos em nome de Deus. Basta recordarmos as contradições das cruzadas, da Inquisição, da Cristandade, do padroado e nas últimas décadas das igrejas eletrônicas (neo)pentecostais, católicas e não católicas, que sob o signo do fundamentalismo, esbaldando posturas moralistas, se aliou à classe dominante na sociedade e em vários países tem levado ao recrudescimento do fascismo e de políticas de morte neonazistas. É muito eloquente o Evangelho de Jesus Cristo narrar que com a condenação de Jesus à pena de morte “a cortina do templo se rasgou de alto a baixo, em duas partes” (Mc 15,38: Mt 27,51), ou seja, não dá mais para tolerar o uso abusivo do nome de Deus e de textos sagrados para se tentar justificar projetos políticos de poder. 

Na base do conflito está que entre os poderosos da terra, proprietários até o exílio, mas mesmo exilados, não reconhecem de jeito nenhum que os sem-terra, que ficaram na terra, tenham direito à terra. A classe dominante exilada insiste que até a “glória de Deus” os acompanhou para a Babilônia, se entendem como “filhos de Israel”. “… a Glória de Deus estava por cima, sobre eles. A Glória de Yahweh saiu do meio da cidade e pousou em cima do monte que ficava para o oriente” (Ez 11,22b-23). Não reconhecem que a “glória de Deus” está com “resto” de Israel, os sem-terra. Deus não ficou com Jeremias, com os pobres da terra, com os que reescreveram a história deuteronomista, os povos massacrados que estão na base do livro das Lamentações? 

No livro de Ezequiel não há nenhuma denúncia direta aos sacerdotes por causa dos cultos a Javé e da falta de justiça, como é muito presente em Amós (Am 7,10-17), Jeremias (Jer 20,7-13; 23,11; 26,7), Isaías (Is 1,10-20; 24,2; 28,7-13) e Miqueias (Mq 3,9-11). Em Ez 44-45 está que a missão principal dos sacerdotes é ensinar o povo a distinguir entre o puro e o impuro, entre o sagrado e o profano, mas não se questiona a atuação em si dos sacerdotes. Em Ezequiel, nas denúncias contra as nações não há nem um ai contra a Babilônia. Poucos da elite deportada vão querer voltar para Jerusalém. Este grupo não é o que cantava “que se quebrem os dentes dos filhos da Babilônia” (Sl 58,6), ou “ao lado dos rios da Babilônia nos sentávamos e chorávamos” (Sl 137,1-5). Este povo não foi apenas deportado, mas brutalmente escravizado sob as agruras do Império Babilônico. 

Para o livro de Ezequiel o verdadeiro Israel são os exilados deportados. Os que ficaram na terra são chamados de “povos da terra”, não se reconhece que a glória de Deus esteja com eles. Entretanto, lendo de forma contextualizada o livro de Ezequiel considerando também o que está nos livros de Lamentações, Isaías, Jeremias, em muitos Salmos e outros textos bíblicos, é evidente que a Glória de Deus esteve, está e sempre estará com os deserdados da terra e com todos/as os/as injustiçados/as de todas as culturas. 

Obs.: No próximo texto continuaremos refletindo a partir do Livro de Ezequiel, livro do Mês da Bíblia de 2024. 

18/6/2024

¹ Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: [email protected] – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

² Consulte www.cebimg.org.br

Obs.: As videorreportagens no link, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética 

3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

5 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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